Recentemente o filme nigeriano “Amina” chegou ao ocidente contando a história da lendária rainha africana. Apesar de parecer uma novidade, filmes com personagens negros são antigos, ainda que pouco divulgados. Uma longa tradição de artistas afrodescendentes contribuiu para as telas e se comunicou com o grande público durante mais de cem anos de cinema.
Os artistas e o público afrodescendentes sempre tiveram uma posição marginal dentro da indústria cultural, mas ainda que discriminados pela sociedade, os produtores nunca deixaram de olhar para essa parcela da população como um consumidor em potencial. No final do século 19, o curta metragem “Something Good, Negro Kiss” apresentou o primeiro beijo de um casal negro em tela, numa época que beijos entre atores brancos eram recentes e disparavam polêmica.
Durante o começo do século, a população negra nos Estados Unidos sofreu com a segregação racial sobre as leis Jim Crow, os personagens negros nos filmes eram geralmente interpretados por brancos fazendo blackface e usados para humor depreciativo. Esse cenário de discriminação incomodava a liderança intelectual da comunidade negra como o jornalista Lester Walton, inspirado pela ideologia da elevação racial, segundo qual os negros bem-sucedidos deviam trabalhar para ajudar o restante da população negra a subir de vida. Walton trabalhou para incentivar a produção cultural negra com o intuito de educar o público, inclusive o branco para os males do racismo.
Em 1915, Hollywood lançou O Nascimento de uma Nação filme extremamente bem-sucedido, entretanto racista que inspirou nova onda de perseguição aos negros. A resposta da comunidade foi o aparecimento dos chamados “filmes raciais”. Esse subgênero visava alcançar o público negro trazendo entretenimento a uma comunidade que não era visada pelo cinema mainstream. Para identificar os filmes raciais, os cartazes viam com o selo “todo o elenco é de cor” para diferenciá-los dos filmes convencionais.
A década de mil novescentos e vinte trouxe novo vigor para a subcultura afro. Com a permissividade moral crescendo, a hierarquia racial passou a ser vista de modo menos rígido e nova liberdade era encontrada pela população oprimida. Descendentes de escravos abandonavam o sul dos estados unidos onde eram discriminados e iam para o norte onde não havia segregação e podiam viver de modo mais espontâneo. Com a nova cultura florescendo, ocorreu o fenômeno chamado “renascimento do harlem” marcado por uma nova leva de música, literatura e teatro de uma população outrora silenciada. Na mídia se vendia a ideia do “Novo Negro” mais livre e dono de si mesmo.
Com a subcultura negra se dispersando, o cinema racial teve vários destaques na época. Um dos grandes temas na época era a religião, visto como uma inspiração para as pessoas comuns e oprimidas. Um dos filmes de destaque do gênero foi “Sangue de Jesus” de 1941, falando sobre a jornada da alma após a morte, tendo que escapar da danação eterna e alcançar o paraíso. Outra obra polêmica da época foi “Within our Gates” de 1920, considerado uma resposta ao filme racista “Nascimento de Uma Nação” de alguns anos antes.
O sucesso dos “filmes raciais” e mudança gradual na mentalidade fez com que alguns artistas começassem a quebrar a barreira para o cinema mainstream e alcançassem o estrelado, como Hattie McDaniel primeira negra a ganhar um Oscar e Sidney Poitier primeira estrela negra de Hollywood. Nos anos cinquenta, com a chegada do movimento dos direitos civis, o tema do racismo se tornou cada vez mais visível. Em 1951, Anthony Mann lançou “The Tall Target”, sobre escravocratas que tentavam assassinar Lincoln para impedir a abolição. No começo dos anos 60, John Ford dirigiu “Sergeant Rutledge”, faroeste sobre um oficial do exército negro acusado injustamente de um crime por seus superiores.
A contracultura viu um crescimento do interesse e das oportunidades para afrodescendentes no cinema. Em 1968, George Romero mudou o cinema ao lançar “A noite dos mortos vivos”, um dos primeiros filmes de grande sucesso a ter um negro como protagonista e a ter um final pessimista. Na trama, um apocalipse zumbi se inicia (o primeiro da história do cinema) e os sobreviventes presos numa casa, acabam sendo divididos por uma briga pela liderança entre dois homens, um branco e um negro, que ressoava a lutas raciais que aconteciam na América da época.
Alguns anos depois, o comediante Mel Brooks criou “Banzé no Oeste”, sátira do faroeste que discutia o racismo, no filme, uma pequena vila demanda as autoridades a nomeação de um novo xerife, entretanto os superiores não querem atender o pedido e enviam um homem negro sem experiência para o serviço que se mostra, apesar da decepção geral, muito bom no trabalho.
Um dos frutos da contracultura foi movimento do “Black Power” que buscava valorizar e defender a cultura negra em desenvolvimento, com ele toda uma nova estética foi surgindo, cabelos black power para valorizar o visual, músicas funk para o público. O cinema acompanhou essa tendência com o ciclo do “blaxploitation”, esse subgênero se originou do desejo de cineastas brancos de atingir as novas plateias negras que ganhavam espaço. Diversos astros negros tiveram sua oportunidade, como Pam Grier, Jim Brown e Richard Roundtree. Apesar de sua popularidade, o “blaxploitation” era polêmico mesmo entre a comunidade negra, pelo uso frequente de estereótipos raciais que alguns consideravam pejorativos.
Isso não impediu o sucesso do gênero com filmes como, “Shaft”, “Foxy Brown”, “Dolemite” e “Slaughter”, um tema comum era o vigilante, que protegia a comunidade negra, muitas vezes sem obedecer a lei, daqueles que queriam prejudicá-la, fossem racistas ou apenas negros sem consciência social. Parodias e filmes de terror também estavam entre os filmes, como “Sugar Hill”, “Willie Dynamite” e “Blacula”. Entretanto o subgênero teve vida curta, no final da década de 70 já estava encerrado.
Entretanto, o momento mais marcante do cinema negro foi a chegada do movimento da LA Rebellion, formado após uma iniciativa de professores universitários progressistas que desejavam ensinar alunos de grupos étnicos minoritários sobre cinema para que eles pudessem expressar sua realidade. Seus alunos quando saíram das faculdades foram para o cinema independente com a intenção de filmar suas comunidades para o mundo todo assistir. A iniciativa se assemelhava a outra que já tinha ocorrido no passado, como o neorrealismo italiano que buscava expor a difícil vida na Itália pós-segunda guerra, ou o cinema novo brasileiro, que queria conscientizar sobre a injustiça e desigualdade do brasil dos anos 60.
Ainda que um movimento pequeno e pouco discutido, a LA Rebellion permitiu o início de diversos cineastas marcantes como Charles Burnett, considerado por alguns críticos o diretor de cinema negro mais importante da história. Os filmes do movimento eram principalmente filmes de estudantes, em que os diversos alunos da faculdade de cinema participavam dos filmes uns dos outros, Burnett se destacou ao criar “Killer of Sheep” (1978) como tese de mestrado, considerado o melhor filme estudantil já realizado.
A chegada dos anos 90 trouxe uma nova fase no cinema negro, os chamados filmes de gueto. Filmes que buscavam representar os ambientes marginais urbanos em que a população afro-americana vivia, os filmes de gueto se assemelhavam superficialmente aos antigos “blaxploitation”, mas tinha um caráter mais político e pedagógico, ao contrário do cinema dos anos 70 esses filmes eram produzidos diretamente por cineastas negros como Spike Lee, John Singleton, Mario Van Peebles e Gary Gray.
Spike Lee foi o que alcançou mais sucesso fora do gênero atravessando para o cinema mainstream. Lee começou na direção com “She's Gotta Have It” sobre uma mulher jovem e negra que mantem 3 relacionamentos amorosos ao mesmo tempo e que não tem interesse em monogamia. Mais tarde durante a carreira iria dirigir “Do the Right Thing”, “Malcolm X”, “4 Little Girls”, todos filmes apreciados pela crítica.
O século 21 viu a temática se tornar mais popular, filmes como “Pantera Negra”, “Blade” e “A Mulher Rei” trouxeram protagonistas negros para o publico mainstream. Ainda que afastados do centro da atenção, artistas afro-descendentes tiveram vasto impacto na sétima arte, mesmo que para a maior parte do público isso não seja muito conhecido.