Assim como tal nuvem se encontra em cima, entre ti e o teu Deus, assim deves colocar em baixo uma nuvem de esquecimento, entre ti e todos os seres criados. (…) Numa palavra, todas as coisas se devem ocultar sob a nuvem do esquecimento. O contemplativo deve, pois, renunciar a todo o pensamento analítico, mesmo aquele que tenha Deus por objecto.
(Escritor anónimo do séc. XIV)
Sara Navarro é uma artista que alia a investigação à criação desde o princípio da sua formação em Belas Artes, dando continuidade a esse processo no doutoramento, em que se debruçou sobre a arqueologia e reinventou novos métodos e formas, extraídos de métodos e formas ancestrais. O seu interesse pela arqueologia revela algo que está patente na sua criação – a dimensão temporal. Pode-se dizer que é, antes de tudo, sobre o tempo que nos falam as suas obras: o tempo que se arrasta num ritmo particular, negando a correria do exigente mundo contemporâneo, o tempo arqueológico, que revela traços do presente no passado e vice-versa, e o tempo da arte, que precisa de uma temporalidade própria, que nega o ritmo vertiginoso daquilo que está fora dela e que nos convoca a um momento de meditação, de paragem, de contemplação.
E é de contemplação que fala a obra do autor anónimo do século XIV, escolhida como título, e mote, desta exposição – A Nuvem do Não-saber, ou a Nuvem do Desconhecido (The Cloud of Unknowing, no original). A obra, considerada um guia espiritual, tem atravessado os séculos e influenciou diversos artistas ao longo do tempo. Provavelmente pela poeticidade do texto, pelo modo como o autor tenta conduzir um jovem no caminho da contemplação para encontrar, assim, Deus. A nuvem do não-saber é o que separa, e aproxima, o humano do divino. E ela não é desvendável pela palavra, o seu possível desvendamento acontece como uma revelação, que se sente, mas que dificilmente se consegue traduzir.
Além da referência mais explícita ao texto do século XIV, Sara Navarro traz, nesta exposição, um conjunto de referências literárias, passando pelo poeta Nuno Júdice, pelo filósofo contemporâneo Frédéric Lenoir e pelo Livro do Chá de Kazuzo Okakura. O que encontramos em comum, em tão diversa bibliografia, é o questionamento ou, talvez, o acento que cada um dos autores, à sua maneira, dá à questão do tempo. Do tempo outro – aquele que exige de nós uma retirada do fluxo da vida quotidiana, do olhar que já nada vê, contaminado por tantas imagens, aquele que nos fala da Alma, ou da sua possibilidade.
As obras que são aqui apresentadas, literárias e escultóricas/artísticas, exigem de nós um desligamento do mundo pragmático e uma religação ao mundo espiritual – entendendo espírito como aquilo que em nós sobra, aquilo que não conseguimos abarcar com o logos, aquilo que só a poesia, e a poética das artes, consegue dar-nos a ver.
As peças de terracota distribuem-se no espaço e criam, elas mesmas, um espaço-tempo próprios, percursos de difícil circulação. Percursos que pedem, a cada um de nós, um momento de paragem, de contemplação. Só se alcança o infinito da arte, e aquilo que ela nos quer dizer, quando nos deixamos invadir pelos seus múltiplos sentidos, pelas formas diversas e variadas que cada peça, ou conjunto de peças, assume. Pela textura, rugosidade e unicidade de cada peça, que não é repetível porque é constituída de terracota e de tempo, conseguimos entrever os textos que lhes dão nome. Devemos, para desfrutar da exposição de Sara Navarro, seguir as instruções do poeta: “Faz como o arqueólogo: separa o que te pode restituir a vida que perdeste, não porque a possa recuperar, mas porque ao ver, sobre a mesa do presente, esses fragmentos que sobreviveram, limpos do que os sujou, poderás sentir de novo aquilo que eles te deram (…)” 1 .
1 Nuno Júdice, Regresso a um Cenário Campestre.