Os textos literários são textos que falam de qualquer coisa, que são a propósito de “um mundo”: o mundo “é o conjunto das referências abertas pelos textos “(Ricoeur 1975: 386). Por isso, a significação de um texto não é algo de escondido, mas de “descoberto- aberto”; o que se deixa compreender é o que, num texto, aponta para um mundo possível:
A interpretação torna-se, assim, a apreensão das proposições de mundo abertas pelas referências não ostensivas do texto.
(Ricoeur 1972: 107)
Daí que compreender, é ir do que a obra nos diz, (sentido), àquilo “a propósito de que” ela diz (referência). Compreender interpretando e interpretar compreendendo é deixar-se orientar por um horizonte, pelo modo possível de estar no mundo, aberto e descoberto pelo texto para o intérprete. Será tudo isto que confere ao sujeito uma nova capacidade de se compreender a si mesmo.
É o encontro de horizontes, o do texto e o do leitor, o verdadeiro fio condutor, pois o sujeito que interpreta o texto, é por sua vez, por ele interpretado. A apropriação ou leitura implicada, modifica o leitor, obriga-o a desapropriar-se de si e a receber do texto uma nova proposta. Para Joaquim Teixeira, (1977) o tema do descentramento da consciência constitui o motivo central da interpretação, em Ricoeur. Interpretar é decifrar um sentido que advém à consciência, não sendo por esta constituído. Esta interpretação, co-implicada no descentramento do Cogito, deixa-se guiar numa tríplice direcção: para trás (desejo biológico), para a frente (imaginação poética) e para cima (transcendência). A este horizonte trifacetado correspondem três domínios simbólicos, que simultaneamente se configuram como outras tantas fontes de sentido: os sonhos e fantasmas do inconsciente, as obras da cultura e as representações do sagrado (Teixeira 1977: 56). Pelas obras de cultura, através da analogia que interpela o sujeito e pela ficção, novas possibilidades de estar-no-mundo são indicadas à realidade quotidiana. Logo, é necessário não descurar a função do símbolo e do que ele nos poderá fornecer ao nível hermenêutico e igualmente relembrar a importância dos complementos circunstanciais através de algumas passagens de um ensaio de José Saramago O autor narrador:
Que fazemos, em geral, nós, os que escrevemos? Contamos histórias. Contam histórias os romancistas, contam histórias os dramaturgos, contam histórias os poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e nunca virão a ser poetas, dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples falar quotidiano é já uma história. As palavras proferidas, ou apenas pensadas, desde o levantar da cama, pela manhã, até ao regresso a ela, chegada a noite, sem esquecer as do sonho e as que o sonho tentaram descrever, constituem uma história com uma coerência própria, contínua ou fragmentada, e poderão, como tal, em qualquer momento, ser organizadas e articuladas em história escrita...
(Saramago 1997:39)
Isto quer dizer que todos nós lemos, fazemos leituras desde que nos levantamos até que nos deitamos e contamos essas mesmas leituras em forma de histórias mais ou menos curtas, com mais ou menos peripécias, com mais ou menos dilemas ou contradições e é por isso que Saramago prossegue: “um livro é acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor. Pergunto-me até, se o que determina o leitor a ler não será uma secreta esperança de descobrir no interior do livro – mais do que a história que lhe será narrada – a pessoa invisível, mas omnipresente do seu autor…”. No fundo, Saramago aponta, aqui, para a problemática da identificação possível do leitor com o autor, (de um eu com uma pessoa tu, de carne e osso, que respira, sofre e deseja, invisível mas omnipresente, um ser humano que exprime a sua condição), para a possibilidade de ele próprio se tornar co-autor da obra que está a ler, dado que:
O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão somente, a sua história pessoal. Não o relato da sua vida, não a sua biografia (…) mas uma outra, a secreta, a profunda e labiríntica, aquela que com o próprio nome dificilmente ousaria ou saberia contar. Talvez porque o que há de grande em cada ser humano seja demasiado grande para caber nas palavras com que ele a si mesmo se define e nas sucessivas figuras de si mesmo que povoam um passado que não é apenas seu, e por isso lhe escapará sempre que tentar isolar-se nele (…) talvez porque certos autores privilegiem, nas histórias que contam, não a história que vivem ou que viveram, mas a história da sua própria memória, com as suas exactidões, os seus desfalecimentos, as suas mentiras que também são verdades, as suas verdades que não podem impedir-se de serem mentiras. Bem vistas as coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a história que conto, omniscientemente.
(Saramago 1997:39)
Neste passo já se equaciona a importância do descentramento do eu, (a que já nos referimos), das nossas biografias ocultas, do peso do Passado que co-habita em nós, na nossa memória, feita de reais ficções, ou seja, de contínuas contradições...e não se esqueçam, como apelou Vírgílio Ferreira, que para além de nós, estamos nós ainda.