Um país, que destitui uma presidente por um simples crime fiscal e não é capaz de destituir um presidente responsável por boa parte de milhares de mortos por falta de assistência ou protecção perante a pandemia, não é uma democracia.
Um país, que incorre no mais escandaloso erro judiciário desde o caso Dreyfus (1894-1906) e que, apesar de o reconhecer, não é capaz de tirar todas as consequências, tanto na absolvição da vítima do erro como na condenação dos seus autores, não é uma democracia.
Um país, cujo presidente eleito democraticamente celebra a ditadura e elogia a tortura e se mantém no poder apesar de pôr à venda a Amazónia e de se acumularem queixas contra ele nos tribunais internacionais por crimes contra a humanidade, não é uma democracia.
Um país, com uma notável capacidade científica e técnico-sanitária instalada que está impedido de a usar por simples obstrução por parte de quem tem o poder e a obsessão de matar e deixar morrer, não é uma democracia.
Um país de desenvolvimento intermédio, que deixou capturar os processos eleitorais por uma das classes políticas mais retrógradas e ignorantes do mundo e por média corporativos consabidamente armadores de golpes antidemocráticos ao serviço das elites económicas e financeiras, não é uma democracia.
Um país, onde uma mistura tóxica de milícias criminosas e magistrados desvairados perseguem jornalistas livres e independentes e os impedem de exercer a sua missão democrática de informar confiavelmente, não é uma democracia.
As dificuldades
Um país com um regime supostamente democrático que não é uma democracia nunca está irremediavelmente condenado a tal contradição. As dificuldades e as possibilidades da reversão quase sempre se equivalem. No actual contexto brasileiro as dificuldades para que a semente da democracia volte a germinar são três.
Primeiro, o país não foi capaz de condenar os golpistas de 1964 e muito menos o terrorismo de Estado de que foram autores. Enquanto não o fizer, quem beneficiou com os golpistas viverá sempre na esperança de que eles voltem para resolver os seus “problemas”. De algum modo, os militares já voltaram, mas, por agora, a realidade do seu regresso ainda não está à medida do fantasma do seu regresso.
Segundo, por sua origem colonial o país vive minado por um racismo e por um sexismo classistas que degradam a humanidade dos que vivem excluídos e discriminados e os transforma em seres mais destinados a morrer do que a viver. Daí o fatalismo corrosivo que impede o oprimido de identificar facilmente o opressor.
Finalmente, as forças políticas verdadeiramente democráticas – as que servem a democracia em vez de se servirem da democracia – são minoritárias e estão confinadas à esquerda e ao centro esquerda. Confiam demasiado nas instituições, dividem-se em lutas por poder mais ilusório que real e deixaram a mobilização popular nas ruas e nas praças à mercê dos fanáticos religiosos e dos empresários do ódio.
As possibilidades
As possibilidades são sempre mais difíceis de definir porque cada possibilidade, uma vez concretizada, gera outras novas. Vejo três possibilidades que são condições sine-qua-non da reversão.
Primeira, a destituição ou renúncia forçada do presidente. Sem ela, a alma do país morrerá mais massivamente que a vida dos brasileiros condenados a morrer injusta e desnecessariamente.
Segunda, o STF absolve definitivamente o ex-presidente Lula da Silva e o sistema judicial abandona a deriva autoritária de o neutralizar politicamente a todo o custo. Neste momento, é menos importante que Lula da Silva seja candidato ou seja eleito presidente do que tenha a possibilidade plena de o ser.
Terceira, as forças verdadeiramente democráticas convencem-se de que os fascistas estão no patamar da porta e que, se eles entrarem, não distinguirão entre os diferentes partidos que compõem uma possível frente de esquerda. Todos serão proibidos e os seus dirigentes, muito provavelmente presos. É melhor unirem-se agora na defesa da democracia pois amanhã será demasiado tarde.