Nestes tempos de dificuldades e inutilidades, pragmatismos e vantagens, é bom lembrar o que dizia Epicuro:
O ser bem-aventurado e imortal está livre de preocupações e não as causa a outrem, de modo que não manifesta cólera, nem favoritismo: tudo isso é próprio da fraqueza.
Valorar acontecimentos e situações estabelece prioridades, criando valias e desvalias, proveitos e desproveitos. Isso varia de pessoa a pessoa, de lugar a lugar, de contexto a contexto. Os valores são sempre aderentes e circunstanciais, entretanto se cristalizam em sentidos mais amplos como os de utilidade ou inutilidade.
Pensando em Epicuro diremos que difícil é tudo que é inútil. O fácil, o útil, o necessário à continuidade da vida sempre existe, não precisa ser buscado. Quando Epicuro pensava nessas questões de valores - por exemplo em útil/inútil - ele as subordinava ao natural, ao biológico, ao não construído, manipulado ou industrializado. Era a Grécia onde imperava a pujante natureza: as plantas, o ar, os animais.
No entanto, tiranos e organizações se apropriaram do mundo natural e o utilizaram para matéria- prima do caos. E assim, o útil, o necessário passa a se constituir na busca incessante do necessário para sobreviver. Trata-se do além da existência e que a ela se sobrepõe: a sobrevivência passa então a ser a negação da própria humanidade. É a morte diária que se realiza pela fome, pela exaustão conseguida ao lutar para continuar olhando e andando. Na sobrevivência só interessa o útil e isso define o pragmatismo. O diletante, o espontâneo, geralmente considerado inútil, foi substituído por funcionalidade. Funcionar é o procurado, e assim mecanizado o ser humano é programado para sobreviver, buscando o útil, agora transformado em sua dificuldade diária.
Buscar o útil e evitar o inútil é objetivo constante em nossos sistemas sociais e vivências individuais. Descobrir que tudo que é útil cria resíduos e precisa ser descartado engendra novas sinalizações: o útil se transforma em inútil, tanto quanto o inútil, à depender de recuperação, é criador de utilidades. Essa reversibilidade funcional e perceptiva gera antagonismo, propiciando perplexidade. É um pragmatismo devastador principalmente no campo das relações, mas é o que há de mais comum: quanto "investimento" é feito em relações amorosas, por exemplo, desprovidas de sentimentos autênticos e cheias de visões relativas a suas utilidades seja para neutralizar solidão, facilitar ascensão social e até mesmo estabelecer comprometimentos com a criação de filhos! Encontramos essas atitudes entre casais, entre pais e filhos, entre amigos e colegas de trabalho. Todas essas relações iniciadas como úteis diante de um propósito, podem se tornar obstáculos frente a outros propósitos, inúteis; tanto quanto em outros contextos podem volver à utilidade.
Ao quebrar circuitos relacionais estabelecemos apoios e impedimentos. A pontualização dos processos responsáveis pelos valores, pela vivência do bem e do mal, sempre exaure, pois divide, fragmenta processos ao estabelecer direções completamente alheias ao ocorrido, estabelecendo, assim, valores e gerando atitudes do que deve ser buscado e do que deve ser rejeitado ou desconsiderado. Nesses casos a imanência é abalada nos processos relacionais. Basta pensar como é fácil manter e realizar o imprescindível à vida como o oxigênio, o ar e a água, que são fáceis de encontrar, exceto em situações anômalas e impróprias à vida, como encontrar água em desertos ou inspirar/expirar algum ar quando se tem pulmões congestionados. Atualmente a covid-19 torna difícil, mesmo impossível em certos casos, respirar. Quando os tubos de oxigênio escasseiam, desaparecem seja por imperícia ou por políticas genocidas, respirar se torna uma impossibilidade.
Enquanto persistirem valores e a priori as imanências são negadas e tudo passa a ser justificado por finalidades ou resultados, daí a própria vida passar a ser percebida como conveniente ou inconveniente, útil ou inútil. Isso cria situações nas quais as circunstâncias são decisivas, e assim o fundamental passa a ser o resíduo, a aderência.