O crescimento global da extrema-direita voltou a dar uma nova importância ao conceito de anti-sistema em política. Para entender o que se está a passar é necessário recuar algumas décadas. Num texto deste tipo não é possível dar conta de toda a riqueza política deste período. As generalizações serão certamente arriscadas e não faltarão omissões. Mesmo assim, o exercício impõe-se pela urgência de dar algum sentido ao que, por vezes, parece não ter sentido nenhum.
O binarismo sistema/anti-sistema está presente nas mais diferentes disciplinas, das ciências naturais às ciências humanas e sociais, da biologia à física, da epistemologia à psicologia. O corpo, o mundo, a cidade ou o clima podem ser concebidos como sistemas. Há mesmo uma disciplina dedicada ao estudo dos sistemas – a teoria dos sistemas. O sistema é, em geral, definido como uma entidade composta de diferentes partes que interagem de modo a comporem um todo unificado ou coerente. O sistema é assim algo limitado, e o que está fora dele tanto o pode rodear e influenciar (o seu meio- ambiente) como lhe pode ser hostil e pretender destruir (anti-sistema).
Nas ciências sociais, ainda que algumas correntes rejeitem a ideia de sistema, são muitas as formulações do binarismo sistema/anti-sistema. Distingo duas formulações particularmente influentes. A teoria do sistema-mundo proposta por Immanuel Wallerstein defende que, historicamente, existiram dois tipos de sistema-mundo: o império-mundo e a economia-mundo. O primeiro é caracterizado por um centro político com amplas estruturas burocráticas e múltiplas culturas hierarquizadas; o segundo é caracterizado por uma só divisão do trabalho, múltiplos centros políticos e múltiplas culturas igualmente hierarquizadas. Desde o século XVI, existe o sistema-mundo moderno assente na economia-mundo do capitalismo, um sistema dinâmico, conflitual, com diferentes ritmos temporais que dividiu os diferentes países/regiões em três categorias – o centro, a periferia e a semiperiferia – definidas em função do modo como se apropriam (ou são expropriadas) das mais valias da produção capitalista e colonialista global. O sistema permite transferências de valor dos países periféricos para os países centrais, enquanto os países semi-periféricos actuam como correias de transmissão do valor criado da periferia para o centro (como foi o caso de Portugal durante séculos).
A outra concepção de sistema (e de anti-sistema) tem sido desenvolvida sobretudo na ciência política e nas relações internacionais. O sistema é aqui concebido como um conjunto coerente de princípios, normas, instituições, conceitos, crenças e valores que definem os limites do que é convencional e legitimam as actuações dos agentes dentro desses limites. A unidade do sistema tanto pode ser local como regional, nacional ou internacional. Podemos dizer que, depois da Segunda Guerra Mundial, foram dois os sistemas nacionais dominantes: o sistema político de partido único ao serviço do socialismo (o mundo sino-soviético) e um sistema democrático liberal ao serviço do capitalismo (o mundo liberal). As relações internacionais entre os dois sistemas configuraram um terceiro sistema, a Guerra Fria, um sistema regulado de conflito e contenção. A Guerra Fria condicionou o modo como foram avaliados os dois sistemas nacionais/regionais: para o mundo liberal, o mundo sino-soviético era uma ditadura ao serviço de uma casta burocrática; para o mundo sino-soviético, o mundo liberal era uma democracia burguesa ao serviço da acumulação e da exploração capitalista. Com a queda do Muro de Berlim (1989), este sistema feito de três sistemas entrou em crise. A nível nacional passou a reconhecer-se um só sistema legítimo, o sistema liberal. A crise do sistema internacional da Guerra Fria atingiu o paroxismo com a presidência de Donald Trump. Vistas da longa duração do sistema-mundo moderno, estas transformações políticas, apesar do seu dramatismo, são variações epocais dentro do mesmo sistema, as quais, quando muito, podem estar a sinalizar uma crise mais profunda do próprio sistema-mundo.
São anti-sistémicos os movimentos que se opõem radicalmente ao sistema dominante. Ao longo do século XX, foram anti-sistémicos os movimentos que se opunham ao capitalismo e ao colonialismo (anti-sistema-mundo) e os que se opunham à democracia liberal (anti-mundo liberal). Alguns movimentos foram contra o capitalismo/colonialismo mas não contra a democracia liberal, caso dos partidos socialistas e a maioria dos sindicatos das primeiras décadas do século XX (socialismo democrático). Outros foram contra o capitalismo/colonialismo e a democracia liberal, caso dos movimentos revolucionários – comunistas, anarquistas – e muitos dos movimentos de libertação anti-colonial, com adopção ou não da luta armada. Por fim, outros foram contra a democracia liberal, mas não contra o capitalismo/colonialismo. Foram os movimentos reaccionários, nazistas, fascistas, populistas de direita que, ou não aceitavam sequer os três princípios da Revolução Francesa (liberdade, igualdade, fraternidade), ou viam na evolução da democracia liberal (alargamento do sufrágio, multiplicação dos direitos sociais e económicos) e no crescimento do movimento comunista depois da Revolução Russa uma perigosa deriva que acabaria por pôr em causa o capitalismo. Estes movimentos propuseram um capitalismo tutelado pelo Estado autoritário (fascismo e nazismo).
Foi sempre importante distinguir entre esquerda e direita, entre movimentos revolucionários e contra-revolucionários. Os primeiros, quando lutaram contra o capitalismo/colonialismo, fizeram-no em nome de um sistema social mais justo, mais diverso e mais igual e, quando lutaram contra a democracia liberal, foi em nome de uma democracia mais radical, mesmo que o resultado acabasse por ser a ditadura, como aconteceu com Stalin. Pelo contrário, os movimentos contra-revolucionários lutaram sempre contra as forças anti-capitalistas e anti-colonialistas, muitas vezes com o preconceito de estas serem protagonizadas por classes inferiores ou perigosas e, pelas mesmas razões, dispuseram-se a optar pela ditadura sempre que a democracia liberal significasse alguma ameaça para o capitalismo.
1945-1989
Entre 1945 e 1989 a dialética entre o sistema e o anti-sistema foi muito dinâmica. Nos países centrais do sistema-mundo, o que chamamos hoje Norte Global, o fascismo e o nazismo foram derrotados e apenas sobreviveram em dois países semi-periféricos da Europa, Portugal e Espanha. Na Rússia (e países satélites), a outra semi-periferia europeia, e na China, consolidou-se o sistema sino-soviético. Nos países europeus centrais a democracia liberal passou a ser o único regime político legítimo. Os partidos socialistas abandonaram a luta anti-capitalista (em 1959, o SPD alemão dissociou-se do marxismo) e passaram a gerir a tensão entre democracia liberal (fundada na ideia de soberania popular) e capitalismo (fundado na ideia de acumulação infinita de riqueza), segundo a nova fórmula dada a um velho conceito: a social-democracia. Por sua vez, os partidos comunistas e outros partidos à esquerda dos partidos socialistas integraram-se no sistema democrático. Aliás durante a noite fascista e nazista, os militantes destes partidos (sobretudo os comunistas) foram quem mais dedicadamente lutou pela democracia, tendo pago um alto preço por isso. É bom recordar, a título de exemplo, que Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP, esteve preso durante 15 anos, 8 dos quais em regime solitário.
Na periferia e na semi-periferia do sistema-mundo os movimentos anti-capitalistas e anti-democracia liberal assumiram o poder na China, Cuba, Coreia do Norte e Vietnam, e noutros países alimentaram durante muitos anos a luta anti-sistémica, por vezes com recurso à luta armada, casos da Colômbia, Filipinas, Turquia, Sri Lanka, Índia, Uruguai, Nicarágua, El Salvador, Guatemala. O caso mais significativo de movimento anti-capitalista mas não anti-democracia liberal foi o liderado por Salvador Allende no Chile (1970-1973), neutralizado por um golpe brutal planeado pela CIA.
Em África e na Ásia, os movimentos de libertação anti-coloniais conferiram uma nova complexidade aos movimentos anti-sistémicos. Inspirados pela Conferência de Bandung de 1955 que reuniu 29 países asiáticos e africanos e conferiu força política ao conceito de Terceiro Mundo (o Movimento dos Não-alinhados), propunham-se fazer uma dupla ruptura na lógica sistémica. Por um lado, rejeitavam tanto o capitalismo liberal como o socialismo soviético e dispunham-se a lutar por alternativas que combinavam o pensamento político europeu e várias estirpes de pensamento africano. Por outro lado, procuravam construir um regime político democrático de tipo novo assente no protagonismo dos movimentos de libertação. Grande parte desta experimentação política colapsou durante a década de 1980 por erros internos e pelo cerco do capitalismo global.
1989 até hoje
No período mais recente os traços mais significativos da política anti-sistémica são os seguintes. Com o colapso da URSS pareceu que o mundo da democracia liberal tinha vencido a competição histórica entre sistemas e de maneira irreversível (“o fim da história”). Mas quem venceu? Como vimos, os dois pilares da luta anti-sistémica foram nos últimos 150 anos o capitalismo/colonialismo e a democracia liberal. Em 1989 venceram o capitalismo e a democracia conjuntamente? Ou a democracia à custa do capitalismo? Ou, ainda, o capitalismo à custa da democracia? Para responder a estas perguntas é necessário examinar o que se passou no período anterior com os dois pilares e as mudanças convergentes que ocorreram neles.
Tenhamos em mente que antes de 1945 o fascismo e o nazismo foram, em grande medida, uma resposta ao crescimento da militância das classes trabalhadoras (“a ameaça comunista”) combinado com altos níveis de desemprego e de inflação e o empobrecimento das grandes maiorias. Por sua vez, os limites da democracia liberal (limites do sufrágio, controle total das elites, ausência de políticas públicas universais) não permitiam nem gerir a conflitualidade social nem dar aos movimentos socialistas a oportunidade de consolidar alternativas. Era feroz o confronto entre dois tipos de alternativa: o reformismo e a revolução. Depois de 1945, e como resposta à consolidação do mundo sino-soviético, o mundo liberal dos países centrais procurou baixar a tensão entre democracia e capitalismo. Para isso, as classes capitalistas que o dominavam tiveram de fazer concessões inimagináveis no período anterior: impostos muito elevados, sectores estratégicos nacionalizados, co-gestão entre trabalho e capital nas grandes empresas (caso da então Alemanha Ocidental), direitos do trabalho robustos, políticas sociais universais (saúde, educação, sistema de pensões, transportes). Com isto surgiram amplas classes médias e foi com base nelas que o reformismo se consolidou. Na Europa ocidental a compatibilidade entre democracia liberal e capitalismo ocorria por via da combinação de altos níveis de protecção social com altos níveis de produtividade. Nos EUA, o reformismo assumiu formas muito mais ténues.
Ainda envolveu uma resposta à imaginada ameaça comunista (o macartismo), que aflorou na Alemanha Ocidental sob a forma de Berufsverbot (desqualificação para o exercício de certos cargos por parte dos comunistas e “extremistas radicais”). Mas a nova posição hegemónica dos EUA, a militância sindical e a pujança dos “trinta anos gloriosos” (1945-1975) garantiram a emergência de fortes classes médias.
Este compromisso entre democracia e capitalismo, combinado com a desintegração da URSS, foi o que garantiu a queda, nos países centrais, dos movimentos anti-sistémicos, tanto de esquerda como de direita. Este compromisso entrou em crise a partir de meados da década de 1970 com a primeira crise do petróleo e a crítica dos conservadores ao “excesso de direitos” da democracia (direitos laborais, económicos e sociais) e a crise aprofundou-se dramaticamente depois de 1989. Em retrospecto pode dizer-se que em 1989 os derrotados foram tanto o comunismo soviético como a social democracia. Quem venceu foi o capitalismo à custa da democracia. Essa vitória traduziu-se na emergência de uma nova versão do capitalismo, o neoliberalismo assente na desregulação da economia, na demonização do Estado e dos direitos laborais, económicos e sociais, na privatização total da actividade económica e na conversão dos mercados em regulador privilegiado tanto da vida económica como da vida social. O neoliberalismo começou por ser violentamente ensaiado no Chile e noutros países donSul Global, presidiu às transições democráticas no sul da Europa na década de 1970 e na América Latina na década de 1980.
Até então o Estado democrático ou social de direito era a expressão da compatibilidade possível entre democracia e capitalismo. A partir de 1989, a democracia passou a estar subordinada ao capitalismo e a ser defendida apenas na medida em que defendesse os interesses do capitalismo, a chamada “market friendly democracy”. A ela se contrapôs a social democracia que von Hayek caracterizara como “democracia totalitária”. Como o objectivo principal é a defesa do capitalismo, sempre que a burguesia nacional/internacional o considera em perigo a democracia deve ser sacrificada, um sacrifício que, segundo as circunstâncias, tanto pode ser total (ditaduras militares ou civis) como parcial (Itália do pós-guerra, golpes jurídico-parlamentares dos nossos dias). A diplomacia e a contra-insurgência norte-americanas têm sido os grandes promotores globais desta ideologia.
Os movimentos anti-sistémicos
E os movimentos anti-sistémicos neste último período? É de novo necessário distinguir entre movimentos de esquerda e de direita. Quanto aos movimentos de esquerda, os antigos movimentos revolucionários converteram-se em partidos democráticos e reformistas. A luta anti-capitalista converteu-se na luta por amplos direitos económicos, sociais e culturais, e a luta anti-democracia liberal converteu-se na luta pela radicalização da democracia: a luta contra a degradação da democracia liberal, a articulação entre democracia representativa e democracia participativa, a defesa da diversidade cultural, a luta conta o racismo, o sexismo e o novo/velho colonialismo. Estes partidos deixaram, pois, de ser anti-sistémicos e passaram a lutar pelas transformações progressistas do sistema democrático liberal.
Os movimentos anti-sistémicos de esquerda continuaram a existir mas, por definição, fora do sistema partidário. E pode mesmo dizer-se que se ampliaram, dado o mal-estar social crescente causado pela subordinação incondicional da democracia ao capitalismo, traduzido em repugnante desigualdade social, discriminação racial e sexual, catástrofe ecológica iminente, corrupção endémica, guerras irregulares, e ainda pela incapacidade dos partidos de esquerda de travarem esse estado de coisas. Aos antigos movimentos revolucionários e sindicais sucederam os novos movimentos sociais a nível local, nacional e mesmo global (Via Campesina, Marcha Mundial das Mulheres, e várias articulações globais surgidas dentro e fora do Fórum Social Mundial que se reuniu pela primeira vez em 2001 no Brasil). Novos actores sociais emergiram, nomeadamente os movimentos feministas, indígenas, ecológicos, LGBTIQ, de economia popular, de afro-descendentes. Muitos destes movimentos têm objectivos anti-capitalistas e visam formas de democracia radical. Alguns deles têm conseguido realizar estes objectivos a nível local, transformando-se, assim, em utopias realistas. Até agora não lograram ter uma influência política mais consistente nem a nível nacional nem global por dificuldades nas articulações translocais e pelo facto de o sistema político democrático liberal estar monopolizado pelos partidos. São movimentos pacíficos, guiados pela ideia de democracia de base intercultural, e pela valorização das economias populares e dos saberes ancestrais das comunidades camponesas, indígenas e, no contexto americano, afro-descendentes.
Por sua vez, os movimentos anti-sistémicos de direita (a extrema-direita) ganharam igualmente um novo ímpeto no último período. A derrota do nazismo e do fascismo (em Portugal e Espanha, só entre 1974-1976) foi avassaladora. Quando sobreviveram foi de forma muito atenuada, como no caso do peronismo na Argentina e do varguismo no Brasil, sem ditadura nem glorificação da violência política nem ódio racial. Foi este sistema híbrido que se designou originalmente por populismo. Depois de 1989, assistimos à emergência ou crescente visibilidade de grupos de extrema-direita, quase sempre envolvidos em retórica e acções de ódio e violência racial. Em 2020, segundo um relatório da plataforma Antifa Internacional, houve 810 ataques provocados por “fanáticos, fascistas e violência de extrema-direita” de que resultaram 325 mortes.
Muitos destes movimentos mantiveram-se na ilegalidade ou exploraram zonas cinzentas ou híbridas que tenho designado por alegalidade. Nos últimos vinte anos estes grupos assumiram nova agressividade, procuraram a legalidade e a própria conversão sistémica ao converterem-se em partidos, que conseguiram legalizar com artifícios de linguagem e com a cumplicidade dos tribunais. Quando isto aconteceu, mantiveram estruturas clandestinas formalmente separadas da estrutura partidária, mas organicamente articuladas como fontes da mobilização política que os partidos por si não têm capacidade de garantir. Com a chegada de Donald Trump ao poder os movimentos de extrema-direita ganharam um novo fôlego e diversificaram-se internamente. Os grupos de extrema-direita e as milícias norte-americanas tinham, entretanto, aumentado, sobretudo depois que Barak Obama chegou ao poder. O respeitado Southern Poverty Law Center identificou, em 2018, 1.020 “grupos de ódio”. Alguns são nazis, estão fortemente armados e reivindicam-se da herança dos movimentos de linchamento racial do século XIX (o Ku Klux Klan). Fora dos EUA, grupos paramilitares e milícias na Colômbia, Brasil, Indonésia e Índia chegam perto do poder institucional. Por outro lado, assumiram uma dimensão global que antes não existia ou não era visível. O agente mais visível desta promoção, na Europa e nas américas, é Steve Bannon, uma figura sinistra e criminosa que tem sido bajulada pela comunicação social ingénua ou cúmplice.
Estes movimentos conquistam espaço social, não graças à exaltação dos símbolos nazis (a que também recorrem), mas por meio da exploração do mal-estar social que a subordinação crescente da democracia ao capitalismo provoca. Ou seja, exploram as mesmas condições sociais que mobilizam os movimentos anti-sistémicos de esquerda. Mas, enquanto para estes o mal-estar social decorre precisamente da sujeição da democracia às exigências do capitalismo, exigências cada vez mais incompatíveis com o jogo democrático, para os movimentos de extrema-direita o mal-estar decorre da democracia e não do capitalismo. É, por isso, que, tal como na década de 1930, a extrema-direita é acarinhada, protegida e financiada por sectores do capital, sobretudo pelo capital financeiro, o mais anti-social de todos os sectores do capital.
Duas perguntas
Duas perguntas surgem neste contexto. Primeira: por que é que reemerge agora a extrema-direita se, ao contrário dos anos 1920-1930, não há ameaça comunista nem grande militância sindical? Esta ameaça era uma das respostas à grave crise social e económica que se vivia então. Hoje essa resposta não existe, mas a crise dos próximos anos ameaça ser tão grave quanto a daqueles anos. Os think tanks capitalistas globais (incluindo os chineses) têm vindo a assinalar o perigo de desestabilização política decorrente da iminente crise social e económica, agora agravada com pandemia. Sabem que a ausência de alternativas anti-capitalistas ou pós-capitalistas não é definitiva. A longo prazo, podem surgir e é melhor prevenir do que remediar. A resposta tem vários níveis. O mais profundo é o aperfeiçoamento do capitalismo de vigilância que, com a quarta revolução industrial (inteligência artificial), torna possível desenvolver controlos eficazes da população. A nível mais superficial, promove-se a ideologia intimidatória, anti-democrática, racista e sexista. A linguagem do passado é, neste caso, mais eficaz que a do presente e, por isso, a retórica de extrema-direita fala do novo perigo comunista, que tanto vê nos governos democráticos como no Vaticano do Papa Francisco. Nos EUA, o partido democrático, de centro-direita, é invectivado como esquerda radical, confusamente ligada ao grande capital e às tecnologias de informação e de comunicação. No Brasil, a extrema-direita instalada no poder federal fala do perigo do “marxismo cultural”, um slogan nazi para demonizar os intelectuais judeus. O que se pretende é maximizar a coincidência da democracia com o capitalismo através do esvaziamento do conteúdo social da democracia, fraca em protecção e forte em repressão. Os think tanks sabem que todos estes planos são contingentes e que os movimentos anti-sistémicos podem lançá-los no lixo da história. Daí que mais valha prevenir que remediar.
Segunda pergunta: a extrema-direita tem ou não uma vocação fascista? A extrema-direita não é monolítica nem se pode avaliar exclusivamente pela sua face legal. Daí a complexidade do julgamento. A história ensina-nos duas coisas. A democracia liberal não sabe defender-se dos anti-democratas e, aliás, desde 1945, nunca como hoje se viu com tanta frequência anti-democratas serem eleitos para altos cargos. São anti-democratas porque, em vez de servirem a democracia, servem-se dela para chegar ao poder (tal como Hitler) e, uma vez no poder, nem o exercem democraticamente nem o abandonam pacificamente se perderem as eleições. Contam inicialmente com o apoio dos média convencionais e, a partir de certo momento, com os seguidores nas redes sociais, intoxicados pela lógica da pós-verdade e dos “factos alternativos”.
Mesmo antes de qualquer desenlace ditatorial, a extrema-direita de hoje tem dois dos componentes fundamentais do nazi-fascismo: a glorificação da violência política e o discurso do ódio racial contra as minorias. Falta apenas a ditadura, mas alguns elogiam a tortura (Jair Bolsonaro no Brasil) e promovem as execuções extra-judiciais (Rodrigo Duterte nas Filipinas). O perigo destes dois componentes pode ser maximizado por três factores. Primeiro, a cumplicidade dos tribunais com um entendimento equivocado (ou pior) da liberdade de expressão. Segundo, o deslumbramento dos média com a retórica “pouco convencional” dos proto-fascistas e o protagonismo dos ideólogos de direita que separam artificialmente a mensagem política, que aprovam, do que consideram ser excessos descartáveis (prisão perpétua, esterilização de pedófilos, deportação de imigrantes, segregação das minorias), silenciando que são precisamente estes “excessos” que atraem parte dos seguidores. Terceiro, a legitimação que lhes é dada por políticos de direita moderada, transformando-os em parceiros de governo na esperança de poder moderar tais excessos. Na Alemanha pré-nazi ficou tristemente famoso Franz von Pappen que, em 1933, teve um papel crucial em vencer a resistência do Presidente Paul von Hindenburg em nomear Hitler para o cargo de chefe do governo e, tendo ele próprio integrado esse governo, se mostrou totalmente incapaz de controlar o “dinamismo” golpista nazi.
A defesa da democracia
A defesa de democracia contra a extrema-direita passa por muitas estratégias, umas de curto prazo, outras de médio prazo. A curto prazo, ilegalização, sempre que a Constituição é violada, isolamento político e atenção à infiltração nas forças policiais, no exército e nos média. A médio prazo, reformas políticas que reenergizem a democracia, políticas sociais robustas que tornem efectiva a retórica de “não deixar para trás” nem ninguém nem nenhuma região do país; num país como Portugal, fazer o julgamento político dos crimes do fascismo e do colonialismo para, com isso, descolonizar a história e a educação, promover novas formas de cidadania cultural e respeitar a diversidade que dela decorre. Acossada pela ideologia global da extrema- direita, a democracia morrerá facilmente no espaço público se não se traduzir no bem- estar material das famílias e das comunidades. Só assim a democracia impedirá que o respeito dê lugar ao ódio e à violência, e a dignidade dê lugar à indignidade e à indiferença.