A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção.

(Walter Benjamin, Sobre o conceito da história, tese VIII, 1940)

Não quero ser repetitiva, mas o mundo está assustador. Não que já tenha sido diferente... não houve um só dia nos últimos 2020 anos em que não estivesse acontecendo uma guerra em alguma parte da Terra ou que uma doença contagiosa não estivesse assolando outra.

Convenhamos: nunca tivemos paz. Ela é a exceção da regra. Fome, violências, fenômenos climáticos e imigrações por diversos motivos fazem parte do cotidiano do planeta em alguma proporção desde sempre.

No entanto, desde as primeiras representações que temos registro nas paredes das cavernas, há mais de trinta mil anos, sabemos que, apesar de todos os problemas que os humanos enfrentavam naquela época, e esse é um dos mistérios indecifráveis da nossa espécie, também sempre encontravam tempo e espaço para o exercício da imaginação, que junto com a realidade, os sonhos, as experiências sensitivas e as paixões, se tornavam matéria na criação da arte.

Essa pausa para o trabalho que hoje chamamos de artístico, para manifestar um ponto de vista através de formas, técnicas, códigos, materiais e cores distintas, que prosseguiu e se desenvolveu ao longo dos séculos e em sociedades variadas, não era realizada por uma pessoa alheia ao cenário terrível no qual estava inserida... seu olhar apenas se diferenciava (e se diferencia) do olhar dos outros. Não se trata de enxergar menos ou ignorar os problemas que vivem ou que vivem os outros, mas, pelo contrário, trata-se de enxergar todo o cenário, além do caos que estamos imersos e que nos enceguecem. Trata-se de não perder a capacidade de se assombrar com e de criar apesar da realidade, e além disso, pensar que esta obra ficará para os outros e, portanto, cabe a ela, sem a presença do homem, transmitir um efeito e um afeto esperado pelo seu criador.

A ideia deste texto, que vou dividir em duas partes, me ocorreu justamente porque vi dois filmes recentes que me fizeram pensar em seus diretores e roteiristas como algumas dessas pessoas iluminadas, quase caracterizados como estrambóticos, hoje, que criam histórias que unem fábulas, símbolos, sonhos com os mais difíceis e graves problemas da sociedade contemporânea e fazem, portanto, arte, apesar de tudo. São os filmes Border e Lazzaro Felice. Divido em dois textos porque há muito o que quero comentar sobre ambos os filmes, apesar de me atentar a não dar os famosos spoilers e perder leitores para todo o sempre.

Nesta primeira parte, me centro em Border, do diretor iraniano-dinamarquês Ali Abassi.

Border

A trama de Border tem como protagonista Tina, que leva uma vida pacata em sua casa na floresta, trabalha como agente alfandegária da Marinha Sueca, e possui um faro aguçado para mentira, vergonha, culpa e outros sentimentos humanos que os denunciam rapidamente sem que ela precise nem mesmo abrir a bolsa de ninguém. De longe, Tina já consegue sentir quando bandidos querem entrar no país, senhoras levam um número de bebidas alcoólicas maior do que o permitido, ou quando contrabandistas querem cruzar a fronteira trazendo produtos ilegais. Todos a olham estranho não só pelas expressões faciais que faz ao “farejar”, mas por toda sua aparência. Tina parece deformada... possui um nariz e uma testa maior do que o “normal”, os cabelos ralos, os dentes muito amarelados e o corpo troncudo. O julgamento que todos dão a sua aparência é transmitido nas feições de medo, repulsa e repugnância quando passam por ela. Mas como toda troca de olhar, o observado também observa, e nós, como o terceiro participante, espectador que somos, questionamo-nos sobre a humanidade frágil e a validação ou não do outro como humano também. Como se reconhecer da mesma espécie e, portanto, igual a pedófilos e estupradores? E como se reconhecer humana e, portanto, igual, quando a resposta aversiva e espontânea de todos lhe diz que determinados traços presentes a rebaixam de categoria? Olham-na como se Tina fosse um monstro, mesmo sendo eles os que, muitas vezes, cometem monstruosidades.

Em uma espécie de compensação, não obstante, quando Tina está na floresta, sente uma espécie de conexão, e atrai todos os tipos de animais que lá vivem: raposas, alces. As próprias árvores, a relva e a cachoeira desses bosques do Norte parecem recebê-la com afago e protegê-la em sua solidão.

Até que Tina conhece Vore, um sujeito muito parecido fisicamente com ela, e o mesmo olfato que a faz desconfiar dele, também a atrai, e ela passa a buscá-lo para conhecê-lo mais, e ao descobrir as semelhanças entre os dois, não só se apaixona, mas também passa a se conhecer. Depois de um encontro mágico e brutal que os dois têm na floresta, Vore conta a Tina que lhe mentiram toda a vida e que ambos não são humanos, e sim trolls, esses seres misteriosos que pareciam existir somente na mitologia, e Tina, apesar de fascinada por finalmente descobrir a verdade sobre si e se ver identificada, reconhecida, também entra em crise com sua origem e com sua natureza. Ela nunca se sentiu totalmente humana, é certo, mas tampouco compartilha de toda a identidade não-humana que Vore lhe revela. Mais tarde, ele também lhe confessa seu plano obstinado de causar aos humanos o máximo de dor que seja possível, como uma vingança, pelo histórico de morte e violência que estes já causaram por sua raça.

Quando Tina fala a Vore que não concorda com essas atitudes, porque nem todo humano é ruim, ele só ri de sua inocência, como se enxergasse mais que ela: um olhar que traz uma sentença justificada. Porém, pouco depois, Tina, ao saber de seus crimes e de seu envolvimento em uma rede de pedofilia internacional e tráfico de crianças que ela já investigava desde antes, se vê entre a obrigação de lhe denunciar e a angústia de perder o único ser que lhe enxergou como é, sem o véu do preconceito. Só conto até aqui, para que assistam ao filme.

Mais do que a problemática do olhar, isto é, de como vemos apenas uma superfície e somente por ela, já classificamos e, quase instantaneamente, já excluímos quaisquer que sejam os diferentes de nós, um dos pontos-chave desse filme, de beleza sensível e delicada, é justamente trazer esse tema pela perspectiva de Tina. Ela não se sente pertencente ao próprio lugar, mas sim a estrangeira que não faz parte de espaço algum. Lançado em 2018, em um ano em que dois dos principais assuntos e maiores dificuldades que a Europa passava era a entrada de imigrantes por suas fronteiras e, por consequência disso, o aumento da xenofobia, o filme Border nos mostra a dura sensação de ser alguém que se sente pária e inadequado em qualquer lugar e por qualquer ser. Como é fácil esquecermos que somos todos de uma espécie por natureza migrante, desde quando ainda pintávamos e traçávamos nossos planos de fuga nas paredes das cavernas.

Hoje, mesmo pensando numa Europa pós-pandêmica (mas ainda com riscos de uma segunda onda), a classificação de “outro” me parece ainda mais complexa que a de dois anos atrás, haja vista que ela ainda ganhou a carga de ameaça, e expandiu suas fronteiras para que qualquer um pudesse se tornar este “outro”, o não-bem-vindo, possível causador de doenças. Com o medo do contágio, passamos a repelir todos os outros, disfarçando nosso preconceito de cor, etnia, gênero, classe social, antes, em algumas situações, de modo mais velado, e agora, com uma justificativa sanitária. A situação é complicada, claro, para analisar sem distância, e o risco ainda há dessa doença causar mais mortes, mas quando nos lembramos que o nazismo dizia e ainda trazia “estudos científicos” para “comprovar” que os judeus transmitiam doenças, eu sinto que é preciso olhar para toda essa situação e, principalmente, para quem chamamos de outro, com muito cuidado.

Outro tema, entre vários, que o filme aborda é sobre a única saída que os diretores de filmes parecem encontrar quando o humilhado finalmente tem poder: a vingança. Essa solução catártica de tomar as armas e reagir com a mesma violência contra aqueles que, até então, eram os repressores, é o que vemos, em diferentes proporções e motes, em Coringa, Bacurau, Era uma vez... em Hollywood, entre outras tantas produções das bilheterias recentes (quando ainda podíamos ir ao cinema). Não é uma fórmula nova, nem muito menos a julgo ruim, mas quando eu penso sobre os exemplos no mundo real dessa vingança dos oprimidos, por exemplo, como foi a Revolução do Haiti, a Revolução Francesa, ou quando ouvimos pessoas a favor do “bandido bom é bandido morto” ou quando desejamos o mal a pessoas do partido X ou Y etc., me pergunto também o quanto somos parecidos com eles, com os “outros”, os nossos inimigos. Não há mesmo outra fórmula que não seja o punitivismo? Só queremos (ou tendemos a querer) que eles passem pelo mesmo sofrimento que um dia “nos” causaram? Não chego à conclusão nenhuma não, não estou condenando-os à fogueira nem muito menos sendo pacifista, só compartilhando a sensação que nesse mundo caótico, mas de aparente saída única, há um monstro habitando no fundo de cada um, mesmo daqueles que não demonstram sua maldade nas atitudes do cotidiano. O filme trabalha essa sutil fronteira entre a humanidade e aquilo que deixa de ser também nesse aspecto. Qual seria a porcentagem que faz um ser humano merecer a classificação de bom ou mau, ou quando passado o limite, perde-se os direitos até de ser considerado gente?

Sem precisar trazer nenhum tipo de moral da história ou levantar nenhuma bandeira, Border traz em sua narrativa aquele olhar apurado em que me remeto no início desse texto, que consegue produzir e transmitir problemáticas terríveis a pessoas sensíveis (e vice-versa), fazendo arte, apesar de tudo. Sobre o quanto queremos nos diferenciar e somos parecidos aos outros, entre vestir a carapuça e tentar defender a humanidade, assim como Tina faz quando Vore a indaga, fiquei tentando encontrar alguns exemplos de pessoas que, quando classificamos, parecem entrar na categoria de pessoas integralmente boas... Mas só consegui pensar em exemplos de pessoas que acabaram por se tornar santas e santos, ou seja, de tão bons, ganharam essa medida de praticamente não-humanos, sobre-humanos, de alguma forma, tal como é Tina. Como se a bondade pura só fosse possível pertencer ao sagrado, às fábulas e aos mitos, mas nunca à humanidade. Será?