Quando pensamos nas n violências que são cometidas pelo ser humano contra outro ser humano e nas diversas populações atingidas — mulher / criança e adolescente / população LGBT / alguns grupos étnicos específicos — precisamos ter clareza que independente das especificidades de cada população, há algo que é básico e essencial num ato de violência.

Antes de qualquer coisa, usar de violência com alguém pressupõe a imposição de força (física ou psicológica) sobre outro, sobrepondo-se desta forma ao seu livre arbítrio e à sua vontade. Ser violento significa ‘causar dano’ ao outro, mesmo que esse dano seja sutil. Ser violento significa agir sem antes perguntar: Eu posso? Ser violento significa pensar apenas em si e na satisfação de seus próprios impulsos e instintos sem ponderar se aquilo é bom ou não para o outro. Ou seja, agir com egoísmo exacerbado e falta de empatia.

O exercício da violência pode partir de esferas micro para atingir esferas macro. Assim, da violência entre indivíduos, podemos pensar na violência intrafamiliar e desta, na violência do Estado contra o indivíduo.

Quanto à violência familiar e política, Sluzki (1994) ressalta que a qualidade sinistra e o efeito traumático devastador são gerados pela transformação do vitimizador de protetor em perpetrador da violência, num contexto que mistifica ou nega as explicações interpessoais mediante as quais a vítima reconhece ou concede significados aos comportamentos violentos e reconhece sua capacidade de consentir ou discordar.

Assim, a violência adquire características devastadoras quando o ato de violência é re-rotulado (Isto não é violência, mas sim educação). Seu efeito, por exemplo, a dor física (Não te dói tanto), é negado. O corolário de valores é redefinido (Faço para teu próprio bem ou Faço porque tu mereces). Os papéis são mistificados (Faço porque te quero bem), ou a posição de agente é redirigida (És tu quem me obrigas a fazê-lo). Esta situação paradoxal, onde a mesma pessoa que tem a função social de oferecer proteção, cuidado e amor é a que assume o papel de castigadora e violadora de direitos, confunde a vítima e a deixa prisioneira e paralisada (p. 229).

No contexto da violência intrafamiliar, três são os atores envolvidos nos atos de violência: a vítima, o agente e/ou a testemunha. A vítima é claramente identificável, no entanto, a testemunha e o agente também estão envolvidos no ato violento. No caso da vítima, os resultados de abuso sexual, abuso físico, abuso psicológico, negligência, exploração sexual e exploração do trabalho podem ser evidentes, especialmente pelas consequências que produzem. A testemunha envolve-se ao presenciar os atos emitidos pelo agente violento em direção à vítima potencial. Aquele expressa sua violência pela transgressão de normas de convivência na sociedade ou pelo rompimento com uma regra moral que protege o patrimônio e a vida. O ator de infração impetra mecanismos de controle, carregado de hostilidade e agressividade sobre o outro, garantindo assim, posição de poder (Koller & Antoni, 2004).

Segundo Fuentes (2001), a violência deteriora a saúde, pois, segundo se afirma, suas vítimas possuem maiores possibilidades de adotar condutas que podem vulnerabilizá-las, como incorrer em adição ao álcool ou às drogas, praticar o sexo sem proteção ou exercer a prostituição. Também é muito alta a possibilidade de “revitimização,” isto é, que as vítimas voltem a estabelecer um vínculo violento na fase adulta.

A situação de vulnerabilidade assim é definida por Franco & Blanco (1998) apud Fuentes (2001):

Aquela situação objetiva ou subjetiva de origem material, emocional ou psicossocial, que leva o sujeito a experimentar uma condição de desamparo, dada a fragilidade dos apoios pessoais e comunitários (p. 172).

A violência pode ser definida de várias formas. Mas existe sempre uma linha de base comum a todo ato de violência, qual seja:

Trata-se de ações e/ou omissões que podem cessar, impedir, deter ou retardar o desenvolvimento pleno dos seres humanos. Ocorre em relações interpessoais assimétricas e hierárquicas, nas quais há desigualdade e/ou subordinação. Aquele que violenta o outro toma decisões sobre a vida dele, sem avaliar as necessidades básicas e os desejos que possa ter, levando em conta unicamente suas próprias necessidades.

(Koller, 1999, apud Koller & Antoni, p. 301)

Quem comete uma violência contra outro ser humano, pela própria dificuldade de enxergar e se colocar no lugar do outro e por estar focado apenas em suas próprias necessidades, certamente não tem a dimensão/consciência que pode estar impingindo marcas indeléveis na personalidade e na vida da outra pessoa.

Todos aqueles pacientes que enfrentaram a síndrome de stress pós-traumático em consequência de um ato de violência sofrida são histórias vivas a nos dizer o quanto isto pode ser devastador em suas vidas.

Desta forma, quem trabalha com violência de um ser humano para com outro ser humano, seja na prevenção ou na atenção, deve ter em mente os seguintes quesitos:

1. Do ponto de vista da vítima

  • Parece que quanto mais impotentes estas se sentem ao se verem apanhadas em uma situação de violência, maiores serão os danos físicos e psíquicos ocasionados;
  • Outro aspecto importante que chega a ser esquizofrenizante para quem experimenta a violência “na própria pele” é a contradição experimentada quando o perpetrador da violência é alguém conhecido, com quem a vítima possui um vínculo afetivo e que deveria a princípio protegê-la e exercer funções de cuidado;

Como já salientado anteriormente, os danos causados à vítima podem ser muito severos. Sobretudo, quem trabalha com vítimas de violência deve estar ciente que, quem passou por uma experiência de aniquilamento do eu e teve solapadas suas fronteiras do ego, introjetou o estado de mais absoluto desamparo e teve maximizada a ação de Thanatos (instinto de morte) dentro de si. Neste caso, além do acolhimento e calor que devem ser proporcionados à vítima de violência, ela deve ser atendida em um enquadramento que lhe proporcione segurança, estabilidade e confiança. Sobretudo, o próprio terapeuta deve fazer um exercício consigo mesmo no sentido de conter a sua ansiedade, “não colocar o carro na frente dos bois” (não se antecipar) trazendo à baila conteúdos que a atendida não está pronta para assimilar, já que o laço que a prende a Eros (instinto de vida) é muito tênue e os resultados são de longo prazo.

2. Do ponto de vista do agente de violência, são comuns as condutas abaixo

  • Ignorar os limites do outro;
  • Ignorar as regras para se viver em sociedade;
  • Experimentar um prazer especial em infringir regras;
  • Não valorizar a própria vida ou se sentir invulnerável;
  • Sobrepor a satisfação das próprias necessidades em detrimento do outro;
  • Experimentar sadismo ao infringir dor ou subjugar o outro de n formas possíveis.

Por sua vez, o agente de violência precisa de limites, visto que talvez por uma falha em sua estrutura de personalidade e caráter ou pela própria introjeção de estereótipos socioculturais, age como se o outro não existisse ou o considera apenas e tão somente como instrumento para satisfação de suas próprias necessidades.

Independente da natureza do ato de violência, em se tratando de homens autores de violência, estes precisam saber que cometeram uma infração grave e estão sujeitos às devidas sanções da lei; no entanto, neste caso, a punição somente parece não funcionar, podendo levá-los a incorrer em novos atos de violência. A experiência dos grupos reflexivos para homens autores de violência contra a mulher tem se mostrado uma excelente estratégia metodológica de intervenção junto a esta população por seu caráter educativo / responsabilizante.

Para além dos mecanismos de coerção, o agente de violência também necessita ser ouvido, pois ele também é vítima de uma sociedade preconceituosa, machista, homofóbica, que aniquilou sua sensibilidade e não tolera o diferente; sociedade esta que estimula a competição ao invés da cooperação, que ao invés de lapidar seu egocentrismo natural/infantil para padrões de comportamento mais solidários, caminha na direção oposta valorizando posturas como a Lei do Gerson (1976), ex-jogador de futebol brasileiro, que dizia: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também...”

Então, se para levar vantagem, é preciso “passar por cima do outro” física e psicologicamente falando, então “que se dane o outro”; um raciocínio que pode ser bastante comum no funcionamento do agente de violência.

Outro aspecto mais profundo que não podemos deixar de abordar aqui seria o ódio gratuito ao diferente ou a tudo aquilo que, entende-se, opõe-se ou está na contramão da satisfação dos próprios desejos.

Segundo alguns autores, na Psicologia o ódio é atávico na natureza humana. Conforme citou Freud: “O homem é o lobo do homem.” Longe de entrar na discussão se o homem é naturalmente bom ou ruim, colocarei o meu foco em outra questão bem mais palpável. A necessidade de nos lapidarmos enquanto espécie humana, de todos os pontos de vista. Se alguém ainda está muito aquém na sua escalada do desenvolvimento, é preciso que o seu parceiro de jornada veja ali uma centelha e tenha a consciência, a paciência e a persistência necessárias para investir no crescimento daquela centelha.

3. Do ponto de vista da testemunha

Investigar, da condição passiva de quem testemunha um ato de violência, quais foram o grau e a extensão do dano causado, de forma que possa ser realizada a devida intervenção. Crianças são muitas vezes testemunhas silenciosas, cujos distúrbios no comportamento delatam as consequências da violência a que foram expostas, sendo que elas vêm a ser mais tarde as vítimas de violências de seus futuros parceiros. Lembramos que os padrões transgeracionais de violência, como o próprio nome diz, transmitem-se de geração a geração. É preciso então que seja feito um trabalho de prevenção de forma que a criança/o adolescente possa expressar suas fantasias em um contexto seguro e protegido. Experiências de trabalhos grupais dirigidos no formato de brinquedotecas costumam ajudar crianças a expressar e elaborar seus traumas e suas fantasias. As brinquedotecas possuem ao mesmo tempo um caráter educativo e terapêutico e contam com a participação dos pais ou do adulto responsável.

Enfim, trata-se de um universo muito vasto e este artigo é apenas uma pincelada na ponta de um iceberg.

Por ora, vamos ficar apenas com a reflexão de que a vida em sociedade, por todos os corolários que nela estão envolvidos, exige muito de nós, mas há que se debruçar sobre o fenômeno e ainda assim, por mais difícil que seja, fazer um exercício de doação e de abertura para com outro ser humano em todas as suas contradições e idiossincrasias.

Referências

Koller, Sílvia Helena & Antoni, Clarissa. Violência intrafamiliar: uma visão ecológica. In Koller, Sílvia Helena (Org.) – Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil. São Paulo: Casa do Psicólogo, p 297- 314, 2004.
Sluzki, Carlos. Violência familiar e violência política: implicações terapêuticas de um modelo geral. In: Schnitman, D.F. (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Editora Artmed, 1994.