Quebrar certezas é o que sempre acontece quando se confronta a realidade não presumida, não aceita. Interpretações e delírios exemplificam satisfatoriamente essa questão. Imaginar um perseguidor e a ele reagir faz, frequentemente, esbarrar em moinhos de vento, quimeras que mostram o vazio das crenças, seus despropósitos.
Estar se sentindo perseguido por alguém e começar a jogar pedras ou a disparar tiros pode criar assassinos que outra coisa não faziam que realizar seus delírios. Esses exemplos extremos configuram ampliações exageradas de situações.
Se recuarmos um pouco vamos ver que as confabulações em torno de se sentir traído, enganado podem causar vinganças extremas. Matar alguém achando que se defende, que se realiza legítimos direitos é um autorreferenciamento delirante. Essas vivências ocasionam pareceres legais, tanto quanto reforçam as molduras autorreferenciadas. Situações raras ocasionam compreensão e desculpas dos familiares das vítimas.
Abranger, entender e desculpar processos que destruíram pessoas e situações é despontualizar ocorrências. Esta magia, quase acrobacia, só é possível por meio da percepção do outro, de sua entrega, certeza e medo. Professores, médicos e juízes às vezes conseguem isso quando se detêm nos fatos incriminadores ou absolvedores. Na literatura, em Os Miseráveis, temos o Abade perdoando Jean Valjean. No Cinema, O Gênio e o Louco (The professor and the mad man) temos o grande encontro amoroso da viúva e o assassino delirante de seu marido. Perceber o outro, resgatá-lo da lama movediça ou cipós embaralhados em que se encontra é bastante improvável, pois ele desaparece, não pode ser percebido, está engolido pelo que o esconde e o faz desaparecer.
Para os que são vítimas dos próprios atos é sempre impossível e improvável aceitar-se, perdoar-se. Quando acontece ser aceito e perdoado por outros, um torvelinho surge. É quase um tsunami que tudo consome e destrói. Nas vivências de culpa nas quais a impotência está coberta, neutralizada, o ser perdoado extingue a culpa e deixa surgir a impotência diante do outro, de si e do mundo. É um processo aterrador, deixa o indivíduo em carne viva, exposto, sem ter onde se apoiar.
Sentir-se impotente, à descoberto, sem camuflagem, sem justificativas, sem desculpas equivale a uma quebra de regras e padrões que permitem o mínimo de adequação e sobrevivência. Vulnerável, sozinho e desamparado, o sentir-se sem condição cria imensa impossibilidade, desde a de conviver com o outro e consigo mesmo, até a desistir. Os processos de culpa, o sentir-se culpado era sua proteção. Desprovido desse deslocamento ele encontra o medo, a omissão, a falta de condição de estar no mundo com os outros. São inúmeros exemplos cotidianos, como a mãe culpada por ter um amante, se flagrada e absolvida pelo marido, se sente tola e imprestável, sem direitos. Ser perdoada é ser destruída, nesse caso pois se rompeu, se quebrou as proteções, aquilo que cobria sua impotência, a culpa.
A culpa é protetora, ela endurece, ela enternece, faz tudo ser reeditado, permite novas maneiras de salvar os outros e a si mesmo, tanto quanto cria obstáculos e perseguidores que castigam, que punem. A culpa, quando questionada, leva à constatação da impotência diante de si, dos outros, da vida.
Estar impedido, ilhado, sozinho é, nos casos de não aceitação, nas situações de distúrbios neuróticos, uma pseudo solução para dificuldades e culpas. Em certas situações, por pressões, descobrir que o impossível se torna real, se torna possível, é uma quebra de certezas que atordoa, tira o apoio, deixa sem caminhos, sem perspectivas. Descobrir o que estabelece as certezas, o que estabelece as culpas é a única maneira de ser resgatado dos turbilhões desumanizadores.