A história deste texto é completamente inventada, mas baseia-se numa doença real que conheço bastante bem. O recurso a histórias, em determinado contexto, acaba por ser bastante eficaz na partilha de assuntos sérios e de explicação difícil. Não esperem grande ciência. Talvez sintam, se for bem sucedido, um aguçamento da vossa sensibilidade.

O cenário é qualquer lugar onde se possa conversar tranquilamente. Desta vez será junto ao rio de uma cidade qualquer. Luísa é a primeira personagem a chegar. É muito importante observar o seu comportamento enquanto está sozinha. Melhor dizendo, é muito importante observar o comportamento do seu corpo.

A perturbação de ansiedade generalizada está descrita e definida no Manual Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais — Diagnostical and Statistical Manual of Mental Disorders —, geralmente conhecido por DSM, sob o código 300.01 (F41.1). Talvez vos interesse passar por lá os olhos após a leitura desta história.

Embora não fossem lentos, os passos de Luísa eram inseguros. Manter o ritmo exigia-lhe esforço. Os ombros estavam contraídos, as costas encurvadas e a expressão ausente. Dir-se-ia o estereótipo de alguém tímido ou introvertido. Falsa impressão. A dedução mais correcta seria dizer que Luísa não se sentia à vontade. Em lugar nenhum uma pessoa com perturbação de ansiedade generalizada se sente à vontade. Como o próprio nome da perturbação indica, a pessoa está permanentemente ansiosa.

O sentido da palavra permanentemente é literal. A ansiedade é ininterrupta.

O lugar onde Luísa se encontrava era paradisíaco. O rio, cristalino, as árvores em flor, crianças no relvado a correr de alegria, só faltando voarem como querubins. A serenidade estampada nos rostos adultos era enjoativa. Por não usufruir havia anos de um estado sereno, era uma tentação para Luísa considerar superficial, irresponsável e estúpida a maior parte das pessoas. Era um efeito directo da inacessibilidade à paz de alma.

Tudo, mas mesmo tudo, vinha do aperto permanente no coração, no peito e na barriga, que lhe lançava um formigueiro para ombros e braços, um zumbido em ambos os ouvidos e, ocasionalmente, cefaleias violentas, sobretudo enxaquecas, e tonturas. Este era o seu estado, vinte e quatro horas por dia. Mesmo a dormir, quando conseguia, era envolvida pelo aperto, o formigueiro e o zumbido, por vezes ficava tonta e sentia uma dor de cabeça cuja escala variava entre o resíduo e a tortura.

Tentem imaginar anos, mais de uma década a viver assim e terão uma ideia aproximada do que é a perturbação de ansiedade generalizada.

Como é evidente, para se acalmar, Luísa fazia exercícios de respiração diafragmática. Mas não era o suficiente. Farta de respirar estava ela. O diagnóstico tinha sido feito por uma psiquiatra, que lhe prescrevera a medicação, e era também acompanhada por um psicoterapeuta. Tinha o pacote todo, a vida continuava e a ansiedade oscilava em função do terreno.

Inspirou o ar perfumado e húmido, escutou o riso das crianças e desejou ser feliz.

Houve um período dourado em que o aperto desapareceu. Foi a descoberta de um mundo novo! O período ocorreu durante a tomada de medicação, ao longo de um par de anos. Quando a situação pareceu estável, deu início ao processo de desmame. Não estava a correr bem. A pata de elefante voltava a esmagar-lhe o peito.

— Ai, vida.

Pergunta recorrente era se algum dia deixaria a medicação em definitivo. Cada vez mais estava convencida de que a iria tomar até ao último dos seus dias. Bem se esforçava por encarar a doença mental como uma doença física. Se havia pessoas a tomar medicamentos para o coração ou para a diabetes, ela bem podia tomá-los para a cabeça. Era tudo química.

Viu a irmã chegar, a passos decididos. Joana era uma mulher desembaraçada e sem macaquinhos na cabeça. Disse olá às crianças ao atravessar o relvado, sem as conhecer, trocando acenos. Não se fez rogada quando chegou ao pé de Luísa:

— Estás com um ar horroroso. Morreu alguém ou quê?

— Estou óptima — respondeu Luísa, desenhando o sorriso sonhador que automatizara com anos de prática.

— Assim é melhor. Pensamento positivo, mana!

Trocaram um beijo e foram andando beira-rio, à procura de um banco que tivesse alguma sombra.

Milhões de formigas de gelo eram derramadas do coração de Luísa, erguendo-lhe mais os ombros, paralisando-lhe os braços e traçando-lhe nós na garganta. Durante instantes, tudo em redor ficou desfocado e dezenas de pensamentos paralelos começaram a correr a duzentos à hora. O esforço para manter o sorriso, a descoberta do banco ideal para se sentarem, o ruído das crianças, que rapidamente passara de idílico para infernal, a solidão em que se encontrava, a falta de dinheiro, o ódio ao emprego, a falta de inteligência e sensibilidade que a cercavam, as desonestidades comezinhas, toda a armadilha da vida. Era a reacção habitual aos encontros, independentemente das pessoas em causa. Talvez com a família fosse pior. A irmã conseguia ser insuportável. Joana falava pelos cotovelos.

— Ei! Estás a pensar na morte da bezerra ou quê?

— Estava a olhar para as flores. Desculpa.

— As flores? Quais flores?

— Ali, nas árvores.

— Ah? E então? Já estão assim há um mês. É normal nesta altura do ano.

— Ainda bem. É bonito.

— É bom ver que continuas com o pensamento positivo. Há bocado parecias saída do calvário. Aconteceu alguma coisa?

— Nada. Está tudo normal. — O sorriso de Luísa abriu-se, dando a ideia de estar com uma disposição excelente.

— De onde vinha aquela cara? Sabes que podes falar comigo, Luísa. Somos quem melhor se conhece.

Sem forças, Luísa desatou a rir, uma gargalhada tremenda, compulsiva, que a levava às lágrimas. Tal era o tamanho da ilusão! Como podia Joana acreditar no que dizia? Conhecê-la? Luísa ria a bom rir. Pobre irmã. Não fazia ideia de quem Luísa era, apesar de toda uma vida de intimidade.

— Estás mesmo muito bem disposta — concluía Joana, com sinceridade comovente e ignorância abissal. — Fico muito feliz por te ver assim.

— Obrigada — proferiu Luísa, recuperando o controle. — É bom estar alegre — declarava, sentindo tristeza, desespero e nojo por cair no pântano do sarcasmo e da catarse. Que mais poderia fazer? A sua irmã e o mundo quase todo não pareciam ter a capacidade intelectual nem a inteligência emocional para compreenderem a dimensão da dor crónica que lhe dilacerava tronco e membros, lhe esgotava a alma e lhe privava de todas as alegrias, colocando-lhe a vida entre parênteses.

— Alegre como estás, seria excelente vires ao aniversário da Eunice. Vais divertir-te a valer. — A ilusão de Joana era imparável, prosseguindo a uma velocidade galopante. — Há várias pessoas que eu gostava de te apresentar e esta festa seria uma óptima ocasião.

— Vou pensar nisso.

— Vais pensar nisso, vais pensar nisso... Anda de uma vez, pá! Deixa-te lá de ansiedades e dessas coisas. Vai correr tudo bem, estarás em magnífica companhia e vais sentir-te muito feliz.

— Dá-me uns dias, Joana.

— Não compliques. A Eunice vai adorar ver-te.

— Eu depois digo-te. — Sempre de sorriso aberto, Luísa apontou para um banco livre. — Olha, podemos sentar-nos ali.

Ao sentar se, Joana esticou as pernas e espreguiçou-se.

— Olha lá, tens feito exercício? Aposto que é por isso que estás tão bem disposta.

Lá vinham as teorias.

— Sim, todas as manhãs, como de costume.

— Está mesmo a resultar!

Luísa corria desde a adolescência e a ansiedade não parara. Ocasionalmente, uma corrida podia acalmá-la. Já lhe acontecera ter longos períodos sem correr e a ansiedade não aumentara por aí além. Pelo menos era o que lhe parecia. A irmã perguntar-lhe se fazia exercício era completamente absurdo, mas Luísa cedo se apercebera de que ser alvo de perguntas absurdas fazia parte do pacote de sofrimento da doença mental.

— Faço exercício físico, faço exercícios de respiração, tento dormir um mínimo de oito horas e estabelecer rotinas, tenho uma alimentação equilibrada e nunca falhei na medicação — derramou, a sorrir, quase a morrer de cansaço.

— É isso mesmo, mana! Agora até nem tomas medicação, não é verdade?

— Pois — confirmou Luísa, bocejando.

— Estou a ver que continuas sonolenta. Lembro-me do tempo em que dormias dias inteiros. Só querias meter-te na cama e dormir. Nem sei como não perdeste o emprego.

— Estava de baixa psiquiátrica.

— Baixa psiquiátrica, baixa psiquiátrica... Tu não és maluquinha, que eu saiba!

— Tenho um diagnóstico de perturbação mental, Joana.

— Olha lá, vais armar-te em lesma outra vez? Isso de chamar doentinhos aos preguiçosos não é para mim! Sempre tiveste a mania de andar por aí feita sonâmbula até eu te meter na ordem. Não te atrevas a deixar de correr e de cumprir rotinas.

— Meter-me na ordem?!

As duas irmãs fitaram se nos olhos.

— Sim, meter-te na ordem — confirmou Joana. — Ou vais dizer-me que começaste a organizar a tua vida sozinha?

O formigueiro gelado colocou Luísa num estado catatónico. Joana não se calava. A soberba no rosto, nos gestos e na linguagem prosseguiam numa sessão de espancamento beatífico.

— Até recusas as viagens que te ofereço. Nunca saíste deste raio de terra! Ainda me lembro do ataque de pânico que tiveste no aeroporto. Foi uma carga de trabalhos recuperar o dinheiro. Julgas que a vida é infinita? Achas que vais ter de volta a juventude ou que não vais envelhecer, perder energia e resistência? Julgas-te a salvo da decrepitude que atinge todos?

— Ainda não estou preparada. — O sorriso de Luísa mantinha-se.

— E quando vais estar?

— Não faço ideia.

— Como consegues estar tão descontraída ao dar-me uma resposta dessas? Dás-me cabo dos nervos!

Descontraída! Luísa não encontrou alternativa a voltar a rir para não esganar a irmã. Sentia cansaço, raiva e arrependimento por ter aceitado aquele encontro. Arrependia-se de todos os encontros com a família e sentia-se culpada todas as vezes que os recusava. Viver com perturbação de ansiedade generalizada era estar permanentemente entre a espada e a parede.

Acabado o riso, ficou calada, no estado habitual de testemunha da vida dos outros e com a própria vida entre parênteses.

Joana não se calava, passando do espancamento ritual para o relato das intrigas do seu quotidiano, tudo extraordinariamente importante e comprovativo da sua superioridade moral, intelectual, estratégica, de todas as superioridades que ela quisesse alegar.

Podemos, no fim desta história, colocar de novo o foco na dor de Luísa, no gelo, no sufoco, na exaustão, na vontade de dormir e não voltar a acordar. A vida, mesmo num local paradisíaco, era demasiado violenta.

— Pensamento positivo, mana! — O grito de Joana interrompeu o nosso foco. Peço desculpa, mas a perturbação de ansiedade generalizada é mesmo assim. Uma cadeia cíclica de interrupções aflitivas, a impedir a vida.