A Cultura tende a fixar-se na memória, na tradição e na inscrição, favorecendo a divulgação na contemporaneidade e deixando vestígios para memória futura. Património (i)material da humanidade estimulando vastíssima bibliografia: são civilizações desaparecidas que alguns contabilizam em 36 (Ed. Amigos do Livro), outros em 40 (ed. Reader’s Digest), outros em 10 (Canal History), outros... a lista é variável.
Às vezes, marginando a linearidade com quebras desse progresso que a História reivindica, outras vezes, contrariando-o com teses à rebours (de antecedentes extraterrestres do homem ou variantes). Daí a desconfiança de qualquer historiador face a culturas/civilizações que alguns consideram desaparecidas e de que não se encontram senão referências (Mu, Lemúria, Atlântida…): preferem encará-las como ficções, geradas pela imaginação, elaboradas como mitos ou parábolas, visando lições…
A queima de livros é a destruição de registos escritos incómodos: excêntricos ao main stream político, religioso, científico, cultural, ou contra ele.
A História assinala muitas “queimas”, em vastas cartografia e cronologia: no Reino de Judá ( século VII a.C.), na China (dinastia Qin, entre 213 e 206 a.C.), na Cristandade em geral (desde o Primeiro Concílio de Niceia, em 325, incluindo as traduções da Bíblia de Lutero na Alemanha em 1640, na de livros protestantes na Áustria em 1730, dentre muitas), na queima dos manuscritos judaicos em 1244 (consequência da disputa de Paris) e nas dos manuscritos maias e astecas nos anos 1560, na União Soviética (1920 ss.), no nazismo (1933 ss.), no macartismo americano (1950 ss.), no Chile (1973), no Sri Lanka (1981, biblioteca pública de Jaffna), na Bósnia (1992-1995), na Austrália (2009, pelos adeptos do culto "medicina universal")…é impossível enumerar todas.
O caso mais famoso de destruição de livros é o da Biblioteca de Alexandria. Criada no século III a.C. no complexo palaciano da cidade de Alexandria, no Reino Ptolemaico do Antigo Egito, integrada no Mouseion, centralizador da investigação. Ideia e proposta de Demétrio de Faleros, estadista ateniense, a Ptolemeu I Sóter, fundador da dinastia ptolemaica, na senda do ideário de Alexandre Magno de promoção da cultura helenística, terá sido ampliada no reinado de Ptolemeu III Evérgeta com o Serapeu. Por lá passaram, nela trabalharam e/ou com ela colaboraram personalidades de referência como Zenódoto de Éfeso (tentou organizar os poemas homéricos e usou a ordem alfabética como método), Calímaco (autor do Pínakes, quiçá o primeiro catálogo de bibliotecas do mundo), Apolónio de Rodes (autor d’As Argonáuticas), Eratóstenes de Cirene (responsável pelo primeiro cálculo da circunferência da Terra), Aristófanes de Bizâncio (inventor de diacríticos gregos), Aristarco da Samotrácia (responsável pela versão definitiva com comentários dos poemas homéricos), Arquimedes, Euclides e tantos outros.
De acordo com Aulo Gélio (séc. II a.C.), teria chegado a ter c. de 700.000 vols., em grande parte definitivamente perdidos sobre a história da humanidade. Reza a tradição que teria sido destruída por ordem de Amir Ibne Alas, governador do Egito em nome do califa Omar, pouco depois da conquista do Egito por Amir em 642, mas a controvérsia rodeia esse episódio e assinala, quer o declínio, quer os acidentes, quer os efeitos de sucessivas guerras. Actualmente, um projecto de uma nova Biblioteca de Alexandria evocadora da desaparecida fez surgir uma sucessora: concluída em 2002, a Bibliotheca Alexandrina impõe-se no Norte da África com missão equivalente, com a Escola Internacional de Ciência da Informação, formadora de profissionais para bibliotecas do Egito, em geral, do Oriente Médio.
Mas a expressão queima de livros acabou por assumir também uma dimensão metafórica, como sinónimo da censura.
O exemplo mais famoso é o Index Librorum Prohibitorum (1559-1966), que chegou a consagrar obras de autores de diferentes áreas da Cultura ( Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Giordano Bruno, Nicolau Maquiavel, Erasmo de Roterdão, Baruch de Espinosa, John Locke, Berkeley, Denis Diderot, Blaise Pascal, Thomas Hobbes, René Descartes, Rousseau, Montesquieu, David Hume ou Immanuel Kant, dentre muitos), incluindo da Literatura (Laurence Sterne, Heinrich Heine, John Milton, Alexandre Dumas (pai e filho), Voltaire, Jonathan Swift, Daniel Defoe, Vitor Hugo, Emile Zola, Stendhal, Gustave Flaubert, Anatole France, Honoré de Balzac, Jean-Paul Sartre, Níkos Kazantzákis, etc.).
A lista é imensa e com sucessivos aditamentos: em 1948, consagrava c. de 4 000 títulos1. Alguns, chegam a ficcionar oficinas dos mesmos livros proibidos (A Oficina dos Livros Proibidos, de Eduardo Roca) ou bibliotecas deles feitas (A Biblioteca dos Livros Proibidos, de Tom Pugh), outros ‘encontram-nas’ (Biblioteca de Nag Hammadi e Manuscritos do Mar Morto), outros, ainda, efabulam a sua circulação medieval (O Mercador de Livros Malditos, A Biblioteca Perdida do Alquimista ou O Manuscrito nos Confins do Mundo, de Marcello Simoni).
No entanto, outros casos há de índex. Formais: 900 livros censurados pelo Estado Novo (1933-74), listados por José Brandão (2012) e em catálogo publicado pela Universidade de Aveiro (2014). Informais: alegadamente, a velha colecção de “Enigmas de Todos os Tempos” da Bertrand, do Círculo de Leitores e das Edições 70, não reeditados, com autores como Robert Charroux, Jacques Bergier, George H. Gallet, Bernhardt J. Hurwood, Guy Tarade e tantos outros que fizeram a vaga d’O Despertar dos Mágicos (1960), abordando desde as pirâmides e Stonehenge, passando pelo Testamento de Noé, a poluição, a telepatia, até às Sociedades Secretas, aos Extraterrestres e aos universos paralelos, promovendo uma releitura da história da humanidade.
O tema dos “Livros Malditos” e da “Santa Aliança” contra o saber, uma suposta organização que, desde os mais recuados tempos, conspira para fazer desaparecer certos segredos, tem promovido especulações: Jacques Bergier configura os seus membros como “Homens de Negro” 2 e enumera algumas obras “malditas” como O Livro de Toth, As Estâncias de Dzyan, a Steganographie, do Abade Trithème 3, estímulo de John Dee a estudo conducente à convocação de um Anjo que lhe teria dado, em 1581, o espelho negro de obsidiana que está hoje no Museu Britânico, o manuscrito Voynich (que o mesmo John Dee ofereceu ao Imperador Rodolfo II em 1584-88), o livro Excalibur de Lafayette Ron Hubbard (de referência para a Cientologia e que enlouqueceu quem o leu, segundo Bergier), A Revolução pela Ciência ou o fim das Guerra, de Mikhail Mikhailovitch Filippov (sobre o meio de transmitir por rádio, sobre um feixe dirigido de ondas curtas, o efeito de uma explosão), A Dupla Hélice (1968), de James Dewey Watson.
Ora bem, mas tudo isto vem a propósito do lugar da Literatura e, em geral, da Cultura, hoje.
Este é um tempo dos grandes problemas globais que nenhuma comunidade pode resolver sozinha: o aquecimento, a guerra, a pobreza, a fome, a energia, a corrupção, a crise de natalidade, o envelhecimento das populações, a desinformação, a desmaterialização e a velocidade da mudança da economia, a deslocalização e internacionalidade das empresas… tempo de desafios e imprevisibilidade que exigem empenhamento, engenho, conhecimento, clarividência, bom senso, investigação, saber e poder, que exigem às comunidades e aos cidadãos saberem quem são e para onde querem ir.
Ora…
O Eurostat calcula quanto é que cada país gasta da sua despesa total em “cultura, recreação e religião”, indicador das prioridades do orçamento nacional. Num relance, o panorama era: a Hungria em 1º lugar com 7,2% do PIB, seguida da Islândia e da Estónia, ambas acima de 5%, sendo a média da União Europeia de 2,2% e estando Portugal em 4.º lugar a partir do último, com 1,8%.
E este é um tempo em que as línguas nacionais estão claramente ameaçadas, no seu território, pelo inglês, em que as nações perdem autonomia (a todos os níveis e esferas), em que o conhecimento da história, das artes e das letras se dilui cada vez mais em benefício de um ensino com taxas de aprovação próximas dos 100% e quadros de critérios de ponderação de classificação final de uma complexidade que deixa margem insuficiente para o conhecimento da matéria leccionada…
É um tempo de circulação de pessoas e de bens, de refugiados e desempregados, de migrantes em busca de emprego, etc. que cada vez descaracteriza mais as comunidades, promove mais a saída (programas académicos, apetências turísticas, etc.), deslassa as relações familiares e de amizade, isola ‘deslocados’ em ‘bolhas de realidade’ cuja compensação surge do recurso às tecnologias potenciadoras de contacto instantâneo (não convívio…), que os absorvem para uma vivência cada vez mais desligada do seu contexto real.
É um tempo, também, em que bem podemos fazer zapping para encontrar um canal nacional com um programa cultural: a programação parece dividir-se entre notícias de acontecimentos brutais ou alarmantes (especialmente, no estrangeiro), desporto (em directo, em diferido, com entrevistas, reportagens, comentado, recomentado e debatido à exaustão e em simultâneo em diversos canais) e telenovelas, matéria que se multiplica em mais de metade de cada revista semanal que encontramos nas bancas. Tudo se precipita, se repete, nada se aprofunda, num debate que nunca permite a informação suficiente mantendo as diversas perspectivas numa indecidibilidade que, num desvio da atenção do telespectador, os comentadores subsequentes apenas comentam do ponto de vista da sua capacidade persuasiva (quem ‘ganhou’ no debate)…
As Humanidades estão a tornar-se cada vez mais marginais e residuais no quotidiano das comunidades, nos programas académicos, nos planos nacionais, em que o humano é alvo de violência viralmente replicada insensibilizadora das sociedades, em que a ética foi substituída pela legalidade, a palavra pelo documento, a confiança pela suspeita, a certeza pela incerteza, os ídolos caíram dos pedestais, alguns temas e disciplinas centrais na cultura humanista passaram a ser olhados com alguma suspeita por aqueles que a observam do lado da nova doxa, hoje, o “politicamente correcto”: são temas ou disciplinas que favorecem a consciência das coisas, a intelecção das manipulações e das mistificações, a percepção da mudança… por isso, são perigosos! Isso é já matéria de uma colecção de obras dedicadas a alguns temas e disciplinas que nos iluminam e esclarecem, promovendo uma consciência crítica das nossas circunstâncias, reflectindo sobre o que os torna suspeitos para os que, no exercício do poder (do conhecimento, da política, da economia, da comunicação, etc.), aspiram a ser modernos Príncipes e desejam outros espelhos, mágicos, sim, mas enevoados de lisonja, vassalagem ou eco: Perigoso é… (coordenada por Isabel Ponce de Leão e por mim mesma), cujo volume I reflecte sobre a periculosidade da Arte, da Literatura, da Antropologia, da Publicidade, do Símbolo, do Jornalismo, da Ecologia, da Religião, da Língua Portuguesa e da Lusofonia, estando já no prelo o segundo.
No conjunto, pois, parece que, numa época de transformação acelerada, tudo se conjuga no sentido de evitar que as pessoas tenham os necessários tempo e informação (qualitativa e quantitativamente) para reflectirem, relacionarem, aprofundarem a informação… pensarem. Funções da Cultura, essa never endind conversation (Wendy Steiner) desconfortável para os que querem reconfigurar as sociedades sem encontrarem resistência. Tão desconfortável que chega a justificar, p. ex., a “suspensão” de instâncias de decisão colectivas, como aconteceu com o Parlamento Britânico por Boris Johnson de 10 de Setembro a 14 de Outubro…
Notas
1 Cf. Index Librorum Prohibitorum. J. Martinez de Bujanda, Index Librorum Prohibitorum, 1600-1966, Genebra, 2002. Apesar de extinto, mantém-se o seu princípio no admonitum, advertência que as autotidades eclesiásticas podem emitir relativamente à periculosidade de determinada obra.
2 A não confundir com os célebres Men in Black/Homens de Negro (1997), filme realizado por Barry Sonnenfeld, protagonizado por Tommy Lee Jones (Agent K / Kevin) e Will Smith (Agent J / James), baseado na série de Banda Desenhada de Lowell Cunningham (editada por Aircel Comics e, depois, por Malibu Comics, da Marvel Comics). Neste caso, trata-se de ficção científica sobre uma agência secreta de alienígenas habitantes da terra e protectores da humanidade contra ameaças intergalácticas, recorrendo a neuralyzers para apagar na memória dos homens o registo do seus contactos, de modo a manterem a atividade alienígena em segredo.
3 Em 1610, só então, em Frankfurt, uma primeira edição do que restava da Steganographie foi publicada por MathiasBecker e incluída no Index pela Congregação do Santo Ofício até 1930.