Existem cidades no planeta Terra que são recheadas de inovações tecnológicas. Seu sistema perpassa pelas relações de poder, acumulações de riquezas entre diversidades e explorações por um aporte das necessidades de leis no decorrer da moral, da ética e da arte. Para tanto, se quisermos conhecer esta cidade, devemos verificar o termômetro de reivindicações existentes em seus direitos. Que direitos reivindicamos?

Cada região é pautada por sua intensidade climática, ideologias e imaginários. Então, duas características assumem notoriedade em tempos de superdosagem de egos - a convivência e a sustentabilidade. Como conviver numa sociedade virtual sem fronteiras, mas com respeito? Como intervir nas atitudes e hábitos dos humanos digitais? Quais são as prerrogativas da sociedade do consumo dos que desejam privilégios?

Formas de convivência e relações sociais reabrem um campo de atenção em tempos efêmeros. O mundo das humanidades digitais é ambivalente entre o silêncio e a autoexposição acarretando uma transformação na maneira de analisar as nuances dos sentimentos humanos.

O sociólogo Gilberto Freyre pautava indagações referentes ao hábito de sentar-se à mesa para tomar café, jantar e almoçar. Esse hábito trazia e traz de maneira até filosófica, inclusive cinematográfica a essência nas relações sociais entre a família, a comunidade, o trabalho e o mundo. A mesa é um lugar de encontros. Hoje nas humanidades digitais numa sociedade hiperconectada, a mesa torna-se um lugar de apoio e de uso decorativo. Isso nos leva a pensar o desenvolvimento da sociedade pelo modo de usar à mesa. A mesa ressalta um espaço comunicacional entre gestos, etiquetas, posturas, cara e bocas que são admitidas na dimensão dos alimentos. Digamos que a mesa é poderosa, ela é fundamental na identificação da batalha dos egos.

Os hábitos são formadores da personalidade, fazem parte dos costumes, revelam identidades e disseminam cultura. No livro O poder do hábito, Charles Duhigg diz que, “muitas vezes, os hábitos são tanto uma maldição quanto um benefício”1. Por assim dizer, a rivalidade sadia traz a criatividade, enquanto a disputa engrandece e fortalece o egoísmo. Desde o aparecimento da propriedade privada, as cidades reascendem o egoísmo como interesse fundamental para convivência e sustentabilidade.

Fico pensando: para que serve a sociologia na era do egoísmo? As correntes filosóficas baseadas nos ismos estão perdendo a vez mediante a ascendência da era da estatística, dos algoritmos e do mercado. Para tanto, escreve o historiador Achille Mbembe:

«Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo»2.

E faz um alerta: “A crescente bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização”.

Uma nova civilização está à vista!

O conhecimento estará mais ainda relacionado ao mercado voltado para humanidades digitais. São novas vivências na qual a estética é pautada em estratégia digital entre consumo e valorização do ego. Em advertência, temos que lembrar que a identidade muda pela luz dos algoritmos. Max Weber registrou que a identidade se transforma quando mudamos nossas relações sociais. Por sua vez, as relações sociais então inseridas pela mídia diante das fake news. Revela-se entre várias dimensões da vida o aspecto que todos os seres humanos possuem – o egoísmo. Em tempos de incertezas, somos envolvidos por diversas ondas de contágio da moda. As pessoas constroem uma corrente de pensamento voltada para o consumo. Estamos vivenciando um mundo recuado para o ego de si mesmo. Digamos que isso ocorre nos lares, nos trabalhos e no cotidiano das pessoas. Cada vez menos estamos prestando atenção no outro pelas atitudes sentimentais. Analisem, somos simpáticos e ótimos, mas até que alguém invada nossas casas, nossos limites, nos tornamos pessoas ferozes. Ninguém suporta a ideia de dividir o que mais gosta.

Pensemos na época que éramos crianças e fazíamos parte do antigo jardim da infância (hoje denominado de educação infantil), quando ocorria uma desavença por conta de algo, seja na divisão da massa de modelar, ou um lugar na fila surgia logo uma briga entre os estudantes. Em contrapartida, a professora utilizava o castigo temporário de não frequentar o recreio, a famosa hora do intervalo, para apaziguar a referida situação (hoje existem novas posturas éticas de aprendizagem), mas logo depois as crianças continuavam a brincar como se nada tivesse acontecido. Voltava tudo à estaca zero, a amizade parecia até bem mais fortalecida. Na fase adulta, travamos nossa memória mediante nossas atitudes e logo entramos em desespero quando acontece uma desavença com nossas amizades. Guardamos mágoas e até adoecemos por uma questão simples de resolução. Por que não agimos da mesma forma das crianças em relação às mágoas? Parece que em pleno ano de 2019, numa sociedade mercadológica estamos a fabricar a cidade do egoísmo.

Uma cidade na qual as pessoas não suportam que invadam seus espaços virtuais e físicos. Ao mesmo tempo, há uma conotação de fragilidade (que não quer dizer sensibilidade), as pessoas não aturam críticas nem erros e conduzem suas vidas por uma ideia de perfeição e artificialidade.

A busca por um mundo de negócios reconduzem as pessoas a uma nova dimensão de estilo de vida. É uma era da busca pelo falso glamour. Com isso, as correntes filosóficas perdem seus espaços, porque não há mais uma seleção do que são as ciências humanas. O importante é que seja evidenciado. Digo isso, porque a cultura popular vem se transformando num balé de mercado. A utilização dos grupos parafolclóricos tem mais espaços nas atrações turísticas. O que mudou foi o modo de seleção na essência do humanismo. A civilização vem caminhando para um padrão de preferencias individuais, comandado por uma inteligência artificial não importando mais o valor ou o grau científico existentes nas relações sociais. O mundo mudou pela forma de como selecionamos o tipo de convivência e o modo de sustentabilidade. Então, como combater o egoísmo?

Essa receita é um tanto complicada de se encontrar. Cada vez mais, a nova vibe das humanidades digitais serão pautadas no egoísmo. Os advogados terão muito trabalho para ocupar o tempo em argumentar novos tipos de egoísmos. Bem que Thomas Hobbes estava certo quando registrou sua celebre frase, o homem é o lobo do próprio homem. E nem mesmo Locke que diz que nascemos uma folha em branco, não imaginaria que dentro dessa folha gotas de egoísmo já se instalavam para moldar o campo de negociações entre relações sociais e modos de vida. As brechas do capitalismo apontam para uma nova forma de convivência. Vocês podem até discordarem, mas, vale lembrar que o nosso espaço está sendo fortalecido por um escudo chamado egoísmo. E no dia a dia, passamos pela rua sem prestar atenção em tantos rostos sem vozes. E são tantas vozes sem rostos. Há pessoas que utilizam o egoísmo para facilitar seu trabalho. A alta competição ajudará a erguer a cidade do egoísmo.

O problema será como lidar com o egoísmo. Saberemos suportar pessoas tão práticas como uma máquina? Recentemente fiz uma pesquisa por telefone para saber o valor da matrícula em várias escolas da redondeza do bairro em que resido para o meu neto de sete anos de idade. Pasmem todos, de cinco escolas pesquisadas apenas uma perguntou o meu nome, o nome da criança, fez um convite para conhecer a escola, enquanto as outras diziam o valor e deligavam rapidamente o telefone. Cada vez mais, tudo ficará prático e então a produção do egoísmo fará o escudo do cidadão.

Na busca de compreender esta cidade, ressalto algumas características existentes em sua extensão:

  • As pessoas são aparentemente insensíveis, e não suportam resolver nada pelo diálogo argumentativo.
  • Elas acreditam que são boas apenas por fazerem pequenas doações a quem já vive de pedidos e mendicância.
  • Ficam comovidas com as cenas de animais mais do que humanos.
  • Adoram comandar o seu espaço, não suportam a casa cheia (só se for por uma celebração)
  • Há uma forte melancolia e pânicos.

Mesmo assim, Émile Durkheim já havia pensando nisso quando escreveu sobre a relação entre indivíduo e sociedade. A questão da coesão mediante as relações sociais:

«Por mais individualizado que cada um seja, existe sempre qualquer coisa que permanece coletiva, é a depressão e a melancolia que resultam dessa individualização exagerada. As pessoas se comunicam na tristeza quando não há mais outra coisa que lhes seja comum (DURKHEIM , 1988, p. 111). Assim, mesmo tais comportamentos têm um enraizamento social, o egoísmo, por exemplo, é ele próprio produto do social: ... os mesmos sentimentos que parecem levar mais em conta a formação pessoal do indivíduo dependem de causas que os ultrapassam! Nosso egoísmo é mesmo, em grande parte, um produto da sociedade (1988, p. 143)».

O que nos restam de uma sociedade cada vez mais compulsiva envolvida pela visão mercadológica? Ao passo que a urbanização deixa o ser humano cada vez mais arrebatado por suas preferências e independentemente de classes sociais, as pessoas hoje em dia possuem suas escolhas, não é verdade?

Não conseguimos pensar em outra coisa a não ser no que necessitamos para melhorar nossa aparência, enquanto as relações transforma-se em espaços de “regastar”3 o tempo em encontros superficiais.

Não sei como será no futuro, mas o egoísmo toma conta de todos os sentidos em nossas atitudes. O fundador da Sociologia como disciplina, Augusto Comte escreveu que “a moral consiste em fazer prevalecer os instintos simpáticos sobre os impulsos egoístas”. Então, o egoísmo triunfa nas cidades para imperar em uma sociedade de consumo.

A máquina do mundo é incrivelmente atestada de forças complexas, é um tanto triste e vazia que vai moendo o ser humano, espremendo desejos, sugando vontades, aprisionando sonhos no esmagamento sombrio de sorrisos sem almas. As crianças ainda permanecem com sorrisos intactos de virtudes. Enquanto nós adultos, humanidades digitais, embromamos nossas potencialidades pela ilusão de vida em nossas redomas. E para não deixar de moer o poeta Carlos Drumond de Andrade revela em um trecho do poema Máquina do Mundo:

«...que vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos, passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes...».

Assim o egoísmo será o combustível das cidades, fornecerá razão para o funcionamento do mercado e beneficiará a decadência dos significantes sentimentos humanos. Nessa cidade os poetas terão muitas demandas. Então, sejamos poetas!

Notas

1 DUHIGG, Charles. O poder do Hábito: Por que fazemos o que fazemos na vida e nos negócios. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.39.
2 Ver aqui.
3 Forma de gastar o tempo novamente, repetidamente com o consumo de algo.