Precisamos (ou pelo menos eu preciso) falar sobre o elefante na sala: até quando a gente vai fingir que está tudo bem idolatrar artistas (normalmente homens) monstruosos só por causa de um filme, livro ou qualquer outra coisa que eles tenham feito?
Eu imagino que devido ao alto volume de problematizações levantadas, em especial por nós mulheres (negras, brancas ou indígenas, com nossas várias particularidades e questões), os homens de forma geral estejam com pouca paciência para mais um dedinho na cara - e isso inclui aqueles mais próximos a nós. Mas fazer o que, se eles tiveram vários séculos para nos dividir, dominar e oprimir? Fazer o que se as estatísticas da violência, do subemprego e da desigualdade continuam contra nós? Nosso movimento é lento (está aí há mais de um século exigindo igualdade de gotinha em gotinha), mas contínuo. Somos uma espécie de exército de mães criando filhos que não parimos nem escolhemos ter, ensinando regras básicas de convivência, impondo limites a pequenos e grandes déspotas, dando bronca e recebendo a mesma reação birrenta e raivosa quando simplesmente dizemos ‘não’. Honestamente, diante desse quadro, eu aplaudo de pé aquelas de nós que efetivamente fazem a escolha de ser mães. Mas esse já é outro assunto.
Um pouco antes do Natal, um desses homens extremamente próximos a mim comprou uma camiseta numa loja muito descolada na Rua Augusta (São Paulo), de onde eu mesma tenho algumas camisetas. Uma tarde, usou a camiseta e se sentou ao meu lado no sofá. Eram 28 (contei depois) quadrados sobre o tecido cinza, cada um com o rosto e sobrenome de um diretor de cinema famoso. Todos homens. Todos brancos.
Assombrada com o quanto aquela camiseta me incomodava continuei olhando, tentando entender melhor, procurando uma chave, uma piada, um enigma que justificasse, que desse algum sentido para a existência da camiseta. Não tinha. Como se a ausência total de diversidade já não fosse uma questão inaceitável, lia-se sob o primeiro quadrado: Allen. Encostando a ponta do indicador no pano estampado, fui listando quadro por quadro: pedófilo, abusador, assumiu que foi omisso com relação a Harvey Weinstein, pedófilo e abusador, permitiu estupro em cena, etc. Pulei vários no meio, de caras legais que também são grandes diretores.
Aos cultos e cinéfilos deste mundo, antes de prosseguir, devo dizer-lhes: eu também amo O último imperador com todas as forças do meu ser; adoro Pulp Fiction e já fui a uma festa fantasiada de Mia Wallace; a sequência inicial de Manhattan também me arrepia, chegando a embargar a voz. Isso provavelmente não mudará sabendo que eles não são boas pessoas, maus caráteres e, em alguns casos, chegam a provocar náuseas. Mas se você é um adulto, já não é sem tempo de aprender a de fato separar as coisas.
Dylan Farrow, para citar um exemplo, não é uma louca que está há quase trinta anos acusando um homem inocente (o próprio irmão – e filho biológico de Allen – endossa a narrativa dela, além do resto do histórico bizarro do diretor, que aponta para uma conclusão óbvia). Escolher corroborar a versão do diretor é, acima de tudo, uma perversão sem tamanho e demonstra uma falta de empatia digna de um psicopata.
Os traumas de quem sofre abuso, sobretudo quando crianças, são perenes. Não tem cura. A vida continua, elas não morreram fisicamente, mas uma parte da integridade daquele ser humano vai embora para sempre. E não tem remendo, não tem linha e agulha pra consertar, ao contrário da camiseta comprada na Rua Augusta. Diante dessas tragédias pessoais, por que custa tanto, principalmente aos homens, segurar a emoção com relação a certas figuras?
Há alguns dias, outro dos homens da minha vida estava num debate (quase um monobate) acalorado com uma moça que não se sentia tão entusiasmada com ‘Bastardos Inglórios’. Quando apontei o mansplaining (afetuosamente chamado macho palestrinha, mas não por isso menos insuportável), fui recebida com olhinhos revirando.
Eu sei. Eu entendo. É chato ser corrigido. É incômodo aprender aos trinta anos que tudo o que te ensinaram a ser não é legal e não é mais aceito como natural. Se colocar na perspectiva do outro é um processo doloroso, cansativo, às vezes a gente perde o chão e precisa se reconstruir com peças diferentes das que existiam antes.
Porém (agora me colocando como porta voz de todas as filhas, irmãs, primas, namoradas, esposas, netas, sobrinhas, amigas, etc), nós precisamos que vocês, os homens das nossas vidas, o façam; e que o façam já. Talvez pareça que estamos fazendo tempestade em copo d’água, mas será que estamos mesmo? Ninguém espera que você deixe de gostar de Annie Hall, nem de debater O bebê de Rosemary numa roda de amigos. Apenas, por favor, não estampem a cara de estupradores na roupa de vocês como se o fato de serem bons profissionais nas suas chamadas ‘áreas de atuação’ apagasse o lastro de destruição que eles deixaram na vida das pessoas a quem fizeram mal, um mal que, por muitas vezes, jamais será reparado. Não nos forcem a ficar olhando a cara deles pendurados em pôsteres pela casa, na lanchonete, no banheiro da balada. Não misturem a cara deles com a nossa roupa suja, nem com a pilha de roupa para passar. Cada vez que você faz isso, assina um contrato tácito de que é OK ser um predador, contanto que você crie alguma coisa brilhante. É verdade que já não é possível desfazer todo o mal já feito. No entanto, não vejo outra saída digna e humana que não passe pela repulsa, se não pela obra, por essa idolatria cega, boba, machistóide e infantilizada em relação a esses homens - em toda a acepção do termo - maus.
Não deve ser tão difícil. Não pode ser tão difícil.
Gente, não pode.