Afinal, é o sonho que comanda a vida, já dizia o poeta António Gedeão... e se comanda a vida é algo da maior importância, essencial em qualquer civilização, em qualquer cultura, no avanço do autoconhecimento de nós mesmos!
Seja o sonho nocturno, esse puzzle labiríntico que nos obriga a pensar simbolicamente quando acordamos, seja o «sonhar acordado» diurno, que nos leva às mais altas façanhas e a mover montanhas e a inventar e a projectar a nossa vida nas mais longínquas galáxias... todo o sonho é matéria prima criativa e como tal, potencial obra prima!
Ah, se pudéssemos engarrafar os sonhos! Especialmente os natalícios! E se em vez de farmácias com medicamentos em frasquinhos com pastilhas, tivéssemos farmácias onde se vendiam sonhos em frasquinhos, sonhos vintage, sonhos da colheita X ou Y? Não seria bem melhor? É que o sonho também cura! Decerto já ouviram falar da Waking Dream Therapy! Pois é; e existe por cá em Portugal, mais especificamente no Porto!
Já existem clínicas onde o sonho funciona como terapia!
Terapia que Fernando Pessoa muito terá utilizado nele próprio, para combater o seu desassossego, quando nos diz que é do tamanho dos seus sonhos e se agiganta com eles, construindo os seus heterónimos! E se nós formos todos heterónimos de um só sonhador?
«Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso».
(Fernando Pessoa)
Fernando Pessoa não foi apenas escritor, foi o grande psicólogo do século XX. Ele ensinou-nos que somos todos seres plurais, que temos vozes dentro de nós que nos assombram e que o sonho é determinante e destino último:
«Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce».
O património materializado nasce de um património maior e imaterial: o sonho. De tal modo que chega mesmo a afirmar:
«O Universo é o sonho de si mesmo».
Assim sendo, o nosso Ser e Estar – no Mundo é configurado por um caleidoscópio relacional, onde as fronteiras entre consciente, realidade, sonho, eu, outro, se dissolvem progressivamente!
«Se uns vivem juntos, porque não sonharão juntos? ( ...) Há alguma diferença entre o sonho e a vida?»
No Universo construído por Pessoa o sonho integra a multiplicidade dramática; ela torna-se experiência no plano real, vivido:
«De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos».
Um despertador, é isso que Fernando Pessoa tem sido ao longo dos seus 130 anos de vida; um despertador que contém em Si mesmo “todos os sonhos do mundo”; que é do “tamanho dos seus sonhos” e nos chama a atenção para esse verbo que comanda a Vida, o lado A e o lado B. O sonho é memória e esquecimento; ele é símbolo de perpétuo movimento; do processo alquímico da metamorfose dentro de nós mesmos. O sonho é serpentino e motor de auto-conhecimento.
O sonho é um portal quântico que permite aceder a diferentes níveis da vida real, quer ela tenha sido ou venha a ser. Desta forma podemos recriar uma outra linha de vida que pode originar um outro futuro. Isto quer dizer que a auto-descoberta assim como a libertação do “Eu” encontram-se directamente ligados à imaginativa onírica; a essas imagens mentais transformativas que propiciam uma evolução da nossa consciência enquanto seres humanos.
Pessoa multiplica-se num património imaterial que se traduz materialmente em poesia. Viaja através da criação com o propósito de compreender o mundo por meio dos pensamentos dos outros “eus”:
“Ler é sonhar pela mão de outrem”.
Despersonaliza-se para encontrar as respostas para o mistério do desconhecido. Por intermédio dos heterónimos explora a emoção e controla o desejo incontrolável de pensar tudo de todas as maneiras e sonhar todos os sonhos do mundo.
Pessoa perde-se no dominó da criação, faz saltos mortais no trapézio das palavras, destrona a tabuada do Tempo e cola o selo do Sonho no envelope da nossa História.
Os sonhos são viagens oníricas misteriosas e poderosas; podem levar-nos às infra-dimensões do ser humano e às mais altas, supra-dimensões de nós mesmos. Vitamínicos, anestesiantes, cirúrgicos, são como agulhas a costurar no impalpável a mais alta costura: a da nossa subjectividade!