«Será que não estava procurando fotografar
lembranças ou, até, vagos ecos de lembrança (…)
levando a tentar uma operação igualmente irreal, ou seja, a dar
um corpo à lembrança pra que esta substituísse o presente diante de seus olhos?»(Italo Calvino)
O atelier do artista é o lugar consagrado do processo, de um vir-a-ser que pode, ou não, transformar-se em obra de arte. É um espaço que o artista partilha, algumas vezes, e que noutras prefere manter resguardado do olhar dos outros enquanto a obra ainda não aconteceu.
Há artistas que estão a refazer a mesma obra durante toda a vida, e o seu atelier funciona como o retrato dessas obsessões: os objetos largados nos cantos; os papéis espalhados; os livros; as telas e os materiais de trabalho, cada um deles reflete a sua função naquele lugar que é, sobretudo, de criação e de recomeços.
Rodrigo Bettencourt decidiu congelar o momento do silêncio que reina no atelier de outros artistas, enquanto a obra não nasce. Enquanto existe apenas em potência e pode, ou não, vir a desabrochar. Como ele mesmo afirma “e eu sou um observador, que finge não estar presente, que finge que os outros são o mesmo que eu, condenados a algo que não sabemos bem o que é.” Como no mito de Sísifo, artista e fotógrafo comungam de um movimento perpétuo sempre em busca de algo que escapa, que é invisível, mas que ambos, na sua sede de desvelamento, querem revelar, fazer vir à luz, nascer enquanto objeto da criação.
“Este trabalho tem como ponto de partida a ideia do momento criativo, o momento e o lugar onde nasce a obra de arte”. Ao fugir do retrato, Rodrigo Bettencourt, tenta captar o inefável, que é aquilo que ainda não está. Que é o lugar onde tudo principia e também onde a obra pode fica encerrada para sempre se não responder a um anseio maior de dar-a-ver aquilo que o artista quer mostrar.
O atelier é um espaço de aprendizagem e de manufatura – a criação conectada a um gesto. Os materiais revelam-se e confundem-se com as obras que daí advirão. O fotógrafo capta a ideia, mais que o lugar, porque o que vemos não está representado na foto, mesmo que presente naquilo que ela pretende ser: um instantâneo que perdura para que a memória do gesto criador não se esgote.
No conto A Aventura de um fotógrafo, Italo Calvino narra as desventuras de um jovem apaixonado que tentava, obsessivamente, captar/capturar a amada. A primeira vez que ela posou para ele, Antonino teve uma revelação: “Havia muitas fotografias possíveis de Bice e muitas Bices impossíveis de fotografar, mas aquilo que ele buscava era a fotografia única, que contivesse tanto umas quanto as outras.”
O motivo escolhido por Rodrigo Bettencourt para fotografar tem também múltiplas faces e o olhar da sua câmara ajuda-nos a desvendar parte delas. O resto é aquilo que a câmara não capta, mas que o artista, com grande capacidade de síntese e imensa delicadeza, captura: o momento do indizível no ato de criação.