O tempo tende a submergir a obra humana… mas uma segura arqueologia da cultura conduz-nos a lugares inaugurais e à identificação de linhagens de pensamento que esclarecem a evolução da cultura nacional, o progresso do conhecimento nas diversas áreas disciplinares das Humanidades e das Ciências, sendo certo que épocas houve em que esta distinção era pouco operativa. Assim, em vez de circunscrever à Literatura Portuguesa, alargarei o escopo da observação à bibliografia da Cultura Portuguesa, património mais amplo que a inscreve e ilumina.
Peças angulares de uma genealogia do saber, essas obras compõem uma espécie de constelação enciclopédica do mesmo nos finais da Idade Média e no início da Modernidade, cartografando, também, a identidade nacional, quer pelo modo como a inscreve na sua síntese perspéctica, quer por permitir cartografar a cultura nacional desse tempo, quer, ainda, por favorecer a avaliação do progresso reflexivo dessa mesma cultura.
Por isso, a sua edição conjunta constitui um serviço à cultura nacional e um projecto de investigação científica coordenado por Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco e desenvolvido em parceria entre 2 centros de investigação (o Centro Ciência Viva Rómulo de Carvalho e o CLEPUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias), além de outras instituições, com vastas equipas de especialistas e latinistas: Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa (OPCP). Trata-se de observar a génese das diferentes áreas disciplinares, às vezes, ainda não diferenciadas, buscando-lhes o ADN: 80 obras em 30 volumes com seleção de textos e documentos permitirão a reavaliação do pioneirismo em Portugal nos domínios da arte, ciências exatas e ciências humanas, na literatura, na música e em outras áreas do conhecimento.
Dessas fontes, lembro algumas, inovadoramente fraternizadas numa longa série de obras pioneiras da cultura portuguesa, muitas delas do séc. XVI:
Novela de cavalaria (Crónica do Imperador Clarimundo de João de Barros), novela sentimental e epistolar (Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro), epopeia (Cerco de Diu, de Jerónimo Corte Real), arte poética (Arte Poética ou regras da verdadeira poesia [1748], de Francisco José Freire)
Sobre a Europa (Livro dos Arautos e Carta de Bruges, do Infante D. Pedro)
De ética social e política (Leal Conselheiro, de D. Duarte) e de história de Portugal (História de Portugal, de Fernão de Oliveira)
De carácter pedagógico (Breve doutrina e ensinança de príncipes, de Frei António de Beija)
Biografia (Infante Dom Fernando)
Manual de formação conjugal e virtudes (Espelho de casados de João Barros)
De prosa mística (Horto do Esposo e Livro da doutrina espiritual) e apologia religiosa (Anónimo, Corte Imperial, séc. XIV)
Relatos de viagens de descobrimentos (Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia, de Álvaro Velho [atrib.], e a Carta a D. Manuel sobre o Descobrimento do Brasil, Pêro Vaz de Caminha)
Tratados de pintura (Tratado das Cores e Da Pintura Antiga, de Francisco de Holanda), de arquitetura (Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, de Francisco de Holanda, e Tratado de Arquitetura, António Rodrigues), bélico (Arte da Guerra do Mar, de Fernando Oliveira)
Tratado de botânica e farmacopeia (Colóquio dos Simples e Drogas da Índia, de Garcia de Orta)
São estes alguns exemplos da transversalidade disciplinar e do levantamento em cada área do nosso património bibliográfico, de acordo com o consenso dos especialistas. Pela primeira vez, reunidas e publicadas integralmente (embora algumas tenham sido já editadas), oferecidas como instrumento de reflexão sobre o que fomos e o que temos sido.
Os primeiros dois volumes lançados foram: Primeiros textos em português e Primeiro Tratado de Física, coordenados, respectivamente, por José António Souto Cabo e Carlos Fiolhais.
Os Primeiros Textos em Português anunciam-se assim:
«É nas cantigas trovadorescas que encontramos a mais antiga expressão literária da língua portuguesa. Reúne-se neste volume uma antologia de cantigas de amor, de amigo, e de escárnio e mal-dizer, bem como uma seleção de prosa literária e os primeiros exemplos documentados do uso do português em textos não literários».
Quanto ao Primeiro Tratado de Física, de Teodoro de Almeida (1722‑1804), figura maior do Iluminismo português, contributo notável para a renovação da ciência e da cultura científica, aquém e além-fronteiras, consiste n’ A Recreação filosófica, compêndio de física e obra de divulgação bem informada e actualizada.
Note-se que até obras próximas de nós, no séc. XIX, podem constituir-se como génese de um modelo textual. É o caso de Eça de Queirós Cronista que agora publiqueicom prefácio de Miguel Real, autor e ensaísta de reconhecido mérito e que não resisto a usar como exemplo (neste caso, autónomo da colecção que refiro antes).
O corpus que eu trabalho é, rigorosamente, o da génese da crónica queirosiana tal como ele e os seus contemporâneos a definem, designam, intitulam e publicam, sobrepondo esse critério ao actual (ou estaria a incorrer num anacronismo…). Poderia tem alargado o corpus a textos que, em geral, tendem a ser incluídos nessa rubrica (folhetins ou outros textos breves afins sem indicação de género original), mas preferi circunscrever ao cânone mínimo, àqueles em que os oitocentistas e os novecentistas concordam em considerar “crónica”. No caso d’As Farpas, só estudei as queirosianas, não as de Ramalho Ortigão (que as acompanharam nos folhetos de 1971-72 e que continuaram após o fim da colaboração de Eça): era Eça que me interessava, porque mais modelarmente influiu na cronística oitocentista.
Enfim, esse estudo teve vantagens, quer a nível do conhecimento do autor, quer do género textual, quer, ainda, dos caminhos da nossa modernidade literária e jornalística. Senão, vejamos.
A diferença abissal entre a “Chronica” de 1867 (d’ O Distrito d’Évora) e a d’As Farpas (1871-72). De uma para a outra, em 4 anos, tudo muda: Eça define o seu modelo textual da crónica e, por repercussão, toda a cronística nacional. Porquê e como?
O ‘laboratório’ de escrita queirosiano, como dizia o nosso Eça. Onde, como, de que modo e até que ponto experimentava, testava o que iria usar, desenvolver, elaborar no texto ficcional?
Na imprensa oitocentista. O que é que na crónica queirosiana foi tão bem conseguido que a tornou um best seller na sua época e marcou o ADN do género… a retórica do discurso, a comunicação? O discurso queirosiano nunca tinha sido observado do ponto de vista da sua funcionalidade epistemológica: os processos que usou constituíam operadores de conhecimento e combinou-os formando uma rede de intelecção do real de uma certa maneira, como ele o via, desmi(s)tificatoriamente. Não se tratava de caracterizar estilisticamente, mas de analisar a sua dimensão epistemológica.
Esta última reflexão teve uma outra consequência na minha perspectivação do Realismo e, mais rigorosamente, da literatura portuguesa (e, por extensão, da Arte, em geral) desde o Iluminismo: esclareceu certas linhas de continuidade entre o pensamento e a estratégia do Iluminismo, do Romantismo da 1ª geração e do Realismo, linhas de continuidade que não tinha visto assinaladas (muito menos, estudadas) e que me fizeram encarar de modo diferente a nossa modernidade literária, em particular, e estética, em geral.
Eis, pois, um exemplo próximo de nós e que tanto nos revela sobre os caminhos da nossa modernidade. Enfim, observar a escrita na génese da sua área disciplinar, da produção de um autor ou de um género textual tem vantagens imensas, inestimáveis… é o início da aventura, de uma odisseia! E bem aspiramos a odisseias numa época em que oscilamos entre utopias e distopias…