«Estou enamorado pela vida mas inevitavelmente me casarei com a morte!»
«Amo a vida e amo a morte, sou um bígamo existencial!»

(Phatik)

Numa primeira parte vou contrapor citações cujos conteúdos ilustram modus vivendi opostos pois de um lado estarão os mexicanos e do outro os europeus.

Octávio Paz, escritor mexicano, dizia que «a morte não nos assusta porque a vida já nos curou dos medos»; enquanto Giuseppe Belli nos conta que «a morte está escondida nos relógios». Octávio Paz fez a síntese de uns e outros ao escrever : «A palavra morte não é pronunciada em Nova Yorque, em Paris ou Londres porque queima os lábios. O mexicano, ao contrário, brinca com ela. A acaricia. Dorme com ela. A celebra. É um dos seus brinquedos favoritos e seu mais constante amor».

De tal modo isto se passa que num conto da escritora e ilustradora mexicana Yuyi Morales chamado Só um minutinho conta-se que uma vovó bem activa recebe a visita do Senhor Esqueleto, na verdade, a morte, que vem buscá-la. Mas ela é muito esperta e vai adiando o momento da partida arrumando coisas para a sua festa de aniversário e pedindo-lhe para esperar um minutinho… A festa foi linda e cheia de guloseimas. Uma morte açucarada…

Quando li este conto imediatamente me veio à ideia o filme Meet Joe Black, em português Encontro marcado, um filme que estrela Brad Pitt e Anthony Hopkins e que pela primeira vez nos põe em contacto personificado com a Morte, com humor e com alguma naturalidade que não é habitual nos nossos filmes ou narrativas, onde a angústia e a perda são pulsões permanentes. Também neste filme a festa de aniversário, apesar de ser a última (e o aniversariante o saber) foi alegre e com fogo de artifício!

Que tal, então, celebrar a morte com flores e muita festa ? E no México a festa começa, é claro, com a comida. De todas as iguarias preparadas especialmente para a ocasião, a mais apreciada é a caveira sorridente feita de açúcar ou de chocolate, de lantejoulas e marcada com o nome dos parentes falecidos de cada família. Aliás, as caveiras estão por todo lado exibindo os seus enormes sorrisos e sombreros enfeitados com flores e plumas.

«Em poucos lugares do mundo se pode viver um espectáculo parecido ao que acontece durante as religiosas do México» afirma o escritor Octávio Paz no seu livro Labirinto de Solidão.

A representação da morte no México é sorridente, ensina o escritor Fernando Salazar; chama-se Mãe-Morte e também é conhecida como a deusa da terra. É ela que gera todas as coisas e também as faz renascer. Cecílio Robelo, no seu Diccionário Nahuati conta que a Lua enviou um recado aos homens por intermédio da lebre: «Assim como eu morro e renasço todos os dias, vocês também vão morrer para renascer depois». Por isso, até hoje, os mexicanos se sentem à vontade para brincar com ela.

«A morte não tem nada de terrível. No México ela é feita de açúcar e distribuída às crianças» comenta Salazar. Esta familiaridade está tão arreigada na alma mexicana que no dia dos Mortos, para os receber, as casas são enfeitadas com uma flor amarela, típica deste dia, prepara-se um altar com três andares, simbolizando a Santíssima Trindade ou o Espírito Santo. Nele, além da figura do santo da devoção da família e de imagens de Jesus Cristo, coloca-se água, frutas e os pratos de comida favoritos do ancestral que se quer honrar. O altar é todo enfeitado com papel picado de cor preta, símbolo do luto cristão e laranja, a cor do luto azteca e por toda a parte velas, muitas velas para ajudarem os espíritos a encontrarem o seu lugar.

Podemos dizer que a Festa dos Mortos, no México, representa uma ponte entre o mundo dos vivos e o dos seus antepassados já falecidos. Igualmente representa a convivência entre a cultura cristã e a cultura pré-hispãnica, asteca. Os astecas, que estavam no poder aquando a chegada dos espanhóis, foram apenas um, dentre os vários povos presentes em todo o país, como os toltecas, maias, olmecas…Tais culturas adaptaram ao cristianismo espanhol os seus ritos e a sua maneira de se relacionar com os mortos e com a própria morte ( vista como origem e destino, lugar de descanso e de reencontros: será a nossa Ilha dos amores uma visão disto mesmo ? ). E é dessa relação de burla e de respeito, de alegria, de fascinação e de intimidade que povoa e comporta a celebração do Dia dos Mortos.

A familiaridade com que o mexicano trata a morte não o isenta de temê-la, mas o ajuda a conviver e a sobreviver a esse medo. Desde cedo as crianças devoram avidamente as caveirinhas feitas de açúcar, bala de goma, chocolate ou amaranto…assim se acostumam ao contacto com uma morte brincalhona, companheira, personificada em bonecos-caveiras de papel machê.

Em termos ritualísticos, «comer a morte» pode representar a continuidade da vida, como se do ventre da morte pudéssemos ver nascer a vida. Daí se explicam costumes como os dos noivos que, depois do casamento vão ao cemitério onde estão enterrados os seus parentes e tiram fotografias. Com isto, não só apresentam o novo companheiro aos seus mortos como também partilham com eles o momento mais feliz.

O regressar, findas as celebrações, é tão importante quanto a chegada. Daí o poder das orações: elas remetem o morto de volta ao seu espaço e à sua temporalidade, evitando o perigo de que eles fiquem numa zona intermediária prejudicial a si próprios e aos vivos. Com o término das festividades, cada um volta a ocupar o seu lugar: vivos e mortos regressam aos seus espaços, felizes por se sentirem lembrados e por terem partilhado as suas histórias e sonhos. Amparados entre si, todos sabem que no ano seguinte as celebrações irão novamente acontecer e que a memória os unirá outra vez no momento do reencontro.

Morrer para renascer. Este ensinamento nos é propiciado pelo Sol, que nasce, incansavelmente no Oriente (oeste) e se extingue, moribundo, no útero devorador do mundo no Ocidente (leste). Tal como a natureza, o homem está condenado à morte eterna. Morte e vida são portanto, aspectos de uma mesma realidade. A vida brota da morte como a planta do grão, que se decompõe no seio da terra. A morte justifica-se como um bem colectivo e dá continuidade à criação. Os mortos desaparecem para voltar ao mundo das sombras e para fundir-se no ar, no fogo e na terra. A morte funciona como regresso à essência do universo. O asteca tinha como verdadeiro objectivo chegar purificado à morte, que não era outra coisa senão a vida luminosa da consciência. Viver para morrer, sofrer para viver eternamente. Pensando desta forma, a vida se apresenta como um verdadeiro desafio, como também uma maravilhosa oportunidade, um corredor que conduz à porta da imortalidade, no fundo um caminho iniciático.

Mesmo no México contemporâneo, ainda existe um sentimento especial ante o fenómeno natural da morte e da dor que ela possa produzir. Para eles a morte é um espelho, para o qual devemos olhar e nele se reflectirá tudo o que fizemos durante a vida. Se a sua morte carece de sentido, é porque sua vida foi vivida sem sentido, pois a morte nada mais é do que o reflexo da vida, o outro lado do espelho.

É importante sublinhar que para os mexicanos, a morte não é a vingança da vida, mas sim a sua libertação para os tesouros mais profundos da nossa natureza.

A morte é o saber do «Nada»

O nada está a nossa volta
Tudo o que fazemos é
Circunscrito e inscrito do nada
Não tenha medo do nada da morte
Pois não há nada a temer
Nada se cria se
Não houver um espaço vazio para tanto
E este espaço é o nada
E se não houver este espaço
A alma não pode despertar
Portanto não há motivo
Para se temer o nada
Pois o nada faz parte tanto
Da vida quanto da morte
Aceite o nada como um presente
Que ao abri-lo,
Terá a surpresa de uma nova vida
É o nada que transformou-se em tudo
Ao se entregar ao nada
Você ganhará a plenitude.

(Rosane Volpatto)

Eis um poema que nos remete para a célebre frase de F. Pessoa: O mito é o nada que é tudo. Ele que tanto chamou a atenção para a impermanência das coisas, a começar pela nossa Pessoa, os nossos rostos e máscaras, a nossa permanente transformação, o nosso perpétuo movimento. E, de facto se não houvesse morte, morreríamos de aborrecimento! Mas a impermanência com frequência nos assusta…todavia não somos nós a personificação dessa impermanência?

A vida é uma prática mortal! Um livro desassossegante que se abre ao espanto do Ser Humano.

Bibliografia

Bellotti, A. ( 2006): Toques da Alma, Rio de Janeiro. Siri.
Higino, V. ( 1985): El Carnaval. Monografias históricas, folklóricas mexicanas.
Orilla, M. ( 1996): Los dias de muertos en Yucatan, Maldonada editores.
Pathik ( 2005): Diver- Cidades, as vidas e a morte de um peregrino. Edição Vicente-Pironti. Pozo, María del Rocío H. ( 2002): Faces of impermanence. Rotoz Wilfrido ( 1950): Du Solier, Ancient Mexican Costume.