A cultura anda em busca de uma norma,
em busca da adesão coletiva, persegue o que é anormal.
A criação, pelo contrário, visa o que é excecional e único.(Jean Dubuffet)
Antonin Artaud, ao falar da obra do pintor surrealista Victor Brauner, disse: «o ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos». E a arte seria o lugar onde estes estados poderiam emergir, porque é, através das obras, que o inconsciente se revela ou se deixa desvelar. E a fala do inconsciente não está vinculada a um estado mental específico - o trauma, a dor e o vazio são estados d’alma que estão presentes, de forma mais ou menos consciente, desde a arte moderna, agravando-se nos períodos das duas grandes guerras e desembocando numa espécie de mutismo radical que assolou muitos artistas europeus pós-holocausto.
Um destes artistas, Jean Dubuffet, cria o termo arte bruta, que não se referia apenas aos artistas oriundos de instituições mentais mas à sua própria arte e a de todos aqueles que, como ele, viam na cultura asfixiante uma forma de controlo e de policiamento sobre a criatividade e a livre expressão dos artistas. Dubuffet afirmou que a comunidade letrada criou um conceito ambíguo de cultura em que o conhecimento das obras do passado e a atividade criadora do pensamento seriam uma única e mesma coisa. Ou seja, só pode ser artista àquele que (co) responda a uma genealogia pré-concebida e que se insira numa lógica proposta, e disposta, por estes mecanismos culturais. Ao obrigar aos artistas comungarem dos princípios impostos pela sociedade, retira-se, aos artistas, a sua individualidade e o seu direito à existência.
Sandro Resende é um artista que tem trabalhado com criadores de fora da cultura, portanto com não-artistas que são, habilmente, misturados aos artistas de dentro da cultura provocando, assim, uma fricção entre o ser da arte e o ser da cultura, entre a arte e a não-arte, entre os artistas e os outros que fazem uma coisa a que, por falta de um nome melhor, chamamos de arte. O P28 é uma experiência de ensino, de troca, de curadoria. E a obra do artista reflete este processo de criação múltipla, e diversa, entre artista e curador, entre criador de imagens e recolector.
A arte, como terapia, tem sido usada, desde o séc. XIX, por artistas e médicos que acreditavam ser possível tratar os doentes mentais com dignidade, sem magoá-los, tornando visível, pelo processo artístico, as suas angústias, medos e vazios. Nise da Silveira, médica e arte terapeuta brasileira, criou o Museu do Inconsciente, espaço de exposição de artistas/pessoas que foram segregados em instituições de saúde mental, destacados da sociedade e da cultura, relegados ao esquecimento. Através da arte, ela tentou, ao longo de muitos anos, torna-los visíveis. Tornar visíveis os processos que provocam a aniquilação do sujeito: «descarrilhamentos da direção lógica do pensamento; desmembramentos e metamorfoses do corpo; perda dos limites da própria personalidade; estreitamentos angustiantes ou ampliações espantosas do espaço; caos; vazio (…)».
Como Artaud, a Dra. Nise da Silveira sabia que o ser tem estados cada vez mais perigosos, e que uma das maneiras de evitar que estes estados evoluam para processos destrutivos é dar-lhes, apesar da cultura e dentro dela, um lugar e uma imagem. Sandro Resende, como artista e mentor do projeto P28, tornou o Pavilhão 28, do Hospital Júlio de Matos, um lugar possível para novas interpretações da cultura e da Arte. O pavilhão já não existe, mas os projetos resistem na obra, seja curatorial ou artística, de Sandro Resende que, melhor do que qualquer artista no país sabe, muito bem, o que se deve fazer para evitar magoar doentes com esquizofrenia.