É Junho. Estamos quase no verão.
Junho é um mês com algumas efemérides importantes. No primeiro dia do mês celebra-se em Portugal o Dia Mundial da Criança. Embora a Declaração dos Direitos da Criança tenha sido aprovada pelas Nações Unidas a 20 de Novembro de 1959, a data de comemoração difere de país para país. Em Portugal dá-se a 1 de Junho.
Também no mês de Junho sucede o Solstício de verão. Nos momentos de Solstício, o plano determinado pelo eixo da Terra e pelo Sol fica perpendicular ao plano da órbita terrestre. Essa situação acontece duas vezes por ano; uma por volta do dia 21 de Junho e outra por volta do dia 21 de Dezembro. No hemisfério norte, esses momentos são respectivamente os Solstícios de verão e de inverno e marcam mudanças de estação.
Há ocorrências importantes em dias de Solstício. Nessas datas, os dias são mais longos/mais curtos. Também nesses dias, a sombra ao meio-dia solar é mais curta/mais comprida. Desde tempos imemoriais que os povos dedicam uma especial atenção a essas ocorrências. Por exemplo, o Stonehenge, monumento no sudoeste da Inglaterra com mais de 4000 anos, tem as suas pedras orientadas de forma a criarem bonitos efeitos visuais ao nascer e ao pôr-do-Sol de determinados dias. Todos os anos, milhares de pessoas visitam esse lugar místico para celebrar a Festa do Solstício (Figura 1). No interior do monumento, um observador pode determinar, com exactidão, a ocorrência de momentos astronómicos significativos, entre eles os Solstícios.
Neste texto, vamos abordar um episódio histórico célebre, de forma a ligar estas duas importantes efemérides. Trata-se da medição de um meridiano terrestre, levada a cabo por Eratóstenes (276 a.C.-194 a.C.), no 3.º século antes de Cristo. A cidade de Siene (hoje Assuão), situada no Egipto, é palco de um interessante fenómeno em dias de Solstício. Ao meio-dia solar, os obeliscos não têm sombra. Eratóstenes vivia em Alexandria, onde era director da sua famosa biblioteca. Nesse local, mesmo em dias de Solstício, os obeliscos têm sombra. Essa diferença no “comportamento das sombras” deve-se ao facto de as latitudes de Alexandria e Siene serem diferentes e de Siene estar sensivelmente sobre o Trópico de Caranguejo. Com um argumento geométrico, na sequência da constatação e determinação precisa da relação entre a sombra e altura de um obelisco na cidade onde vivia, Eratóstenes conseguiu estimar em 7º12' o arco entre as posições de Alexandria e Siene; sensivelmente 1/50 de circunferência. Em seguida, betamistas (caminhantes profissionais) determinaram a distância entre os dois locais, cerca de 5.000 estádios. Dado que Alexandria e Siene se encontram sensivelmente no mesmo meridiano, para culminar este grande momento na história da ciência, bastou a Eratóstenes fazer uma multiplicação.
O estádio (stadium) era uma unidade de medida de comprimento utilizada na Grécia clássica. Estava associada à pista de Olímpia e, supostamente, correspondia a 600 pés de Hércules (maiores do que os pés dos outros homens). Muito trabalho académico tem sido desenvolvido em torno da conversão do stadium para medidas de comprimento modernas. O que é certo é que a medição levada a cabo por Eratóstenes andará perto dos 40.000 km, número de uma precisão absolutamente impressionante.
O que dá o carácter mítico a este feito é o facto de exemplificar o que o ser humano pode fazer com o seu intelecto. Pensando esquematicamente, por analogia, por dedução, com a ajuda de experiências cuidadosamente planeadas, etc., não há limites para o que se pode conseguir. O avanço científico e tecnológico que hoje sentimos na pele é prova disso mesmo. Milhões de proezas como a de Eratóstenes serviram para nos desenvolvermos cientificamente. E sucederão milhões de novos episódios, diferentes em aparato, mas conceptualmente similares, para manter esse desenvolvimento em velocidade de cruzeiro.
A medida de um meridiano terrestre é cerca de 240.000.000 vezes superior à de um cérebro humano. Um rácio muitíssimo mais vincado do que o existente entre o arranha‑céus mais alto do mundo e uma formiga. Ainda assim, um cérebro humano conseguiu encontrar maneira de medir esse rácio sem satélites nem veículos!
Nos anos 80, Carl Sagan realizou e apresentou o Cosmos, uma das mais mediáticas séries televisivas sobre ciência. O episódio de abertura foi precisamente o episódio de Eratóstenes. Não só fazia sentido começar a série com esse importante “pilar fundacional” que é a Grécia clássica, como era importante mostrar de forma cabal o alcance ilimitado do intelecto humano.
Mas Sagan não foi o único a destacar o feito de Eratóstenes no seu trabalho. N’Os Lusíadas, Luís de Camões, com a sua desconcertante sabedoria, também não deixa de o referir de forma implícita. Numa das muitas fantásticas estâncias do poema português, a propósito de Pompeu, Vasco da Gama explica que este não devia ficar choroso por ter sido derrotado por Júlio César, posto que o seu nome era, ainda assim, temido por muitos.
«Ó famoso Pompeio, não te pene
De teus feitos ilustres a ruína,
Nem ver que a justa Némesis ordene
Ter teu sogro de ti vitória dina,
Posto que o frio Fásis, ou Siene,
Que para nenhum cabo a sombra inclina,
O Bootes gelado e a linha ardente,
Temessem o teu nome geralmente».(Os Lusíadas, III, 59)
Fásis é um rio que desce do Cáucaso (actualmente denominado Rion). Bootes é uma constelação do hemisfério celestial norte. Ao cantar «ou Siene, que para nenhum cabo a sombra inclina», Camões, com o seu estilo poético inconfundível, esclarece que, embora em Siene as sombras não se inclinem (nós não as vemos ao meio-dia solar em dias de Solstício), inclinam-se perante Pompeu (essa é a interpretação lógica a fazer, dada a ideia geral da estrofe). O poeta romano Lucano já tinha usado Siene para ornamentar a sua obra poética. No entanto, o estilo camoniano é único.
Uma outra obra de divulgação sobre o feito de Eratóstenes é o livro infantil The Librarian Who Measured the Earth (1994), escrito por Kathryn Lasky e ilustrado por Kevin Hawkes. Este livro apresenta a melhor forma de abordar esta temática junto de crianças de que temos conhecimento. É com um breve comentário a este livro que terminamos este texto e ligamos as duas efemérides mencionadas.
A divulgação científica deve andar lado a lado com o desenvolvimento científico. A divulgação é essencial, uma vez que, quando se mostra a ciência à população não especializada, promove-se o debate generalizado e puxa-se sangue novo para a actividade científica. Uma boa divulgação deve ser sustentada em dois pilares: clareza exemplar na transmissão das várias ideias e o enaltecimento dos méritos (ou deméritos) da ciência - utilidade, papel histórico e cultural, a sua importância como actividade intelectual fundamental, a sua natureza, etc. A transmissão de ideias científicas a públicos não especializados é algo muito sofisticado. Muitos cientistas não o conseguem fazer, precisamente por terem dificuldades em falar e pensar de “forma não especializada”. Por isso, muitas vezes, a melhor divulgação vem de não cientistas. Colmatando o desconhecimento com estudo, trabalho, várias conversas com pessoas conhecedoras, frequentemente, é o não especialista que consegue passar melhor a mensagem. Isso acontece porque, por experiência própria, o leigo sente na pele as várias dificuldades na compreensão das ideias e procura comunicar de forma a ultrapassar essas mesmas dificuldades. O bom divulgador pensa nas perguntas e nos pensamentos mais simples, aqueles que as pessoas têm quando contactam com uma temática pela primeira vez. Um cientista, para ser bom divulgador, tem de saber voltar atrás, voltar à sua juventude, recordar os seus primeiros entusiasmos. Se não o conseguir fazer, que continue a fazer boa investigação, mas que não tente divulgar.
É claro que estas generalizações são muito perigosas – há muitos cientistas bons divulgadores e imensos não cientistas que, ao tentarem fazer isso (vá-se lá saber porquê…), são o desastre absoluto.
O livro da escritora norte-americana Kathryn Lasky é um exemplo de muito boa divulgação científica. Esta autora galardoada (Washington Post-Children’s Book Guild Award, 1986) conseguiu comunicar o feito de Eratóstenes como história imensamente cativante que é, acompanhando‑a de lindíssimos e rigorosos desenhos feitos por Kevin Hawkes.
A primeiríssima coisa que fez foi frisar o importante papel da curiosidade humana, talvez a maior motivação para o desenvolvimento científico. Romanceou, especulando que Eratóstenes, quando era pequenino, se perguntava sobre os percursos das formigas. Especulou que essa curiosidade talvez tenha sido uma constante na sua vida, levando-o a perguntar-se e a organizar-se sobre muitas coisas, incluindo o tamanho da Terra, assunto que o imortalizaria (Figuras 5 e 7). Desta forma algo floreada, procurou passar a ideia de que a curiosidade, fundamental na construção do conhecimento, é independente de idades, épocas ou temáticas.
A autora dedicou também uma boa parte do livro ao «momento grego». Dessa forma, enquadrou historicamente Eratóstenes, aproveitando para falar de outros importantes vultos gregos, tais como Herófilo (335 a.C. — 280 a.C.) e a sua medicina ou Ctesíbio (285-222 a.C.) e a sua engenharia. Os avanços científicos traduzem-se numa conquista colectiva. Sempre foi e sempre será assim.
Alexandria, com a sua biblioteca e o seu majestoso farol, não foi esquecida. Este local era o grande centro de saber da Antiguidade. Lá havia o museu, com colecções permanentes, todo o tipo de personalidades, e o mais importante “depósito de saber” do mundo, composto por papiros, pinturas, peças arqueológicas, etc. (Figura 6). A sua famosa destruição devido a um incêndio é apontada por muitos como o início da Idade Média.
Com esta referência, Kathryn Lasky chama a atenção de que a construção do conhecimento é apenas uma parte do processo. É igualmente importante guardar, organizar e concentrar esse conhecimento. É isso que permite relacionar, generalizar e colocar à prova as várias ideias que surgem ao longo dos tempos. Este conceito é basilar para uma boa compreensão da Grécia clássica.
Mas o melhor do livro é a explicação do método de Eratóstenes. É essa parte que faz dele uma peça de divulgação exemplar. Para passar a ideia às crianças, a autora evitou números, equações, ângulos, amplitudes, etc., e concentrou o seu discurso nos dois procedimentos fundamentais que basearam o método de Eratóstenes.
Em primeiro lugar, Eratóstenes procurou saber que parte de meridiano era uma distância com que podia lidar (concluiu que o troço Alexandria-Siene era aproximadamente 50 vezes inferior ao meridiano terrestre).
Em segundo lugar, Eratóstenes concentrou a sua atenção na distância precisa entre Alexandria e Siene, para a poder multiplicar por um factor de cerca de 50.
Em relação ao primeiro tópico, a autora usou uma feliz analogia com um limão. Sabendo quantos gomos tem um limão e o tamanho de um desses gomos, pode ter-se uma muito boa aproximação do tamanho do limão (Figura 8 e 10). Esta passagem do grande para o pequeno, de um planeta para um limão, é um tipo de pensamento que um geómetra faz todos os dias. Quando o tamanho não interessa, podemos pensar apenas na forma, com modelos pequenos. É claro que basta uma inspecção visual para saber quantos gomos tem um limão. A questão fundamental foi a de saber quantos caminhos iguais ao de Alexandria-Siene tem um meridiano. Isso conseguiu-se com sombras! Quanto mais longe de Siene, maior a sombra, como se pode ver na Figura 10. Utilizando desenhos muito exagerados (não há pessoas com aquele tamanho em relação Terra), a pessoa pode “sentir” que a sombra aumenta quando nos afastamos sobre a curvatura terrestre. Os detalhes de medição exactos não são o que interessam na construção desta história infantil. O que interessa é essa constatação em relação às sombras e ganhar uma intuição de que estas, eventualmente, podem ser muito úteis para tirar conclusões importantes. Algo que se pode tentar conquistar quase sem palavras. A primeira ideia chave, sem números nem equações é a seguinte: «mais longe, maior a diferença das sombras; mais perto, menor a diferença das sombras». Isto é certeiro e bonito.
Quanto ao segundo tópico, podemos ver um cuidado no livro que, por vezes, nem nos meios académicos conseguimos observar: olhar para as coisas com os “olhos da época”. Talvez em 5000 d.C. uma ida à Lua seja como hoje ir dar um passeio a Sintra. É claro que, quando fomos à Lua pela primeira vez, tratou-se de uma autêntica odisseia, envolvendo os melhores meios à nossa disposição no momento. Com a medição de Eratóstenes passou-se o mesmo. Medir a distância entre Alexandria e Siene envolveu muitos profissionais e muita planificação. Medir a relação entre sombra e poste em Alexandria envolveu postes “finos” e uma cuidada aferição da verticalidade. Este cuidado aparece reflectido nos desenhos de Kevin Hawkes, facto absolutamente assinalável (Figura 6).
As crianças precisam destas histórias. Todos nós precisamos destas histórias.