Toda percepção é estruturada pelos dados relacionais, da mesma forma que é possibilitada pelo isomorfismo (formas iguais e continuadas) dos processos orgânicos, neuropsicológicos. Para que exista percepção visual é necessário um globo ocular e sua estrutura neurológica. Na cegueira é impossível percepção visual embora haja substituição da mesma por estruturas tácteis e auditivas, por exemplo. Percebemos o que está diante de nós e esta percepção depende da nossa estrutura tanto neurofisiológica, quanto psicológica.
Quando estamos psicologicamente referenciados em nossos desejos, dificuldades e metas, ficamos impermeabilizados ao que ocorre, ou ainda estabelecemos interfaces que se constituem em filtros captadores, refratores, consequentemente distorcedores do que ocorre, criando extrapolações ao percebido. As ideias-fixas, os medos e “torcidas” fazem com que o que acontece, com que o que é percebido, seja catapultado para outras realidades, outras telas, criando assim, acréscimos, decréscimos, deslocamentos.
O respeito ou não respeito ao outro, à depender de como se configure - aceitação ou discriminação de roupas, língua, nacionalidade, cor da pele, condição social e econômica - é um exemplo desta filtragem. No contexto do a priori, da discriminação, não está diante de nós uma pessoa que encontramos, está diante de nós alguém que pode nos ajudar nas inseguranças políticas e sociais (os que aparecem com perfil que aceitamos), ou está diante de nós o assaltante, o assassino (os que aparecem com perfil que não aceitamos). Não se vê o que acontece, se vê o que se deseja ou teme acontecer, pois a percepção dos dados é realizada no horizonte das problemáticas: medos anseios e dúvidas, por exemplo.
Husserl falava da necessidade de pôr entre parênteses os dados que apareciam, quando se desejava o verdadeiro, o real significado do acontecido. É o que a “epoché” nos restitui, a vermelhidade, por exemplo, em lugar do vermelho. Densificar é desconstruir pelas aposições construtivas.
Em psicoterapia, questionar as próprias necessidades e problemas é uma maneira de estruturar disponibilidade, limpar autorreferenciamentos que impedem a percepção do que ocorre, enquanto ocorrido. Nas situações de distorção, no estar cheio de expectativas ou desejos, cria-se referenciais que mudam tudo para gerar motivações, justificativas, explicações do que domina como alargamento monovalente. Tudo se transforma e é percebido como estímulo sexual quando a vivência das demandas sexuais e não aceitação das mesmas é uma constante, por exemplo. Não foi à toa que Freud, trabalhando no universo rígido e repressor da Viena do século XIX, viu a sexualidade como base de toda motivação humana. Teóricos, também distorcem quando buscam explicações deterministas, reduzindo tudo às plataformas da causalidade. O “causa e efeito” é uma maneira de simplificar a abrangência das implicações processuais.
Estar no mundo, diante do outro, é o encontro, nada existe além disto. E, é exatamente neste momento mágico, quer para o bem, quer para o mal, que as coisas acontecem. Tudo que acontece está contextualizado na estrutura deste encontro e em tudo que está à sua volta. Vida, arte, felicidade, maldade, acidentes, catástrofes, tudo assim pode ser configurado, entendido, percebido. Filtros, a priori, preconceitos apenas carregam o que se dá para outros contextos e atmosferas alheias ao dado. Filtrar é selecionar resíduos para abrigá-los ou abandoná-los. Supõe sempre uma determinação, uma atitude prévia, invasora do que acontece. Quebrar a dinâmica é uma violentação aos processos relacionais. A continuidade desta atitude cria pressupostos responsáveis pela não disponibilidade. Assim se criam vazios, assim surgem automatismos, assim o ser humano se submete ao que acontece, sem integração ao acontecido. Nestes casos, não há vivência do presente, apenas existe armazenamento de experiências que são cotadas por acúmulo, são resíduos positivos ou negativos.
Distorcer, filtrar é se impermeabilizar à vida e deste modo se fazem autômatos, peças da engrenagem reguladas por compromissos e regras. Estas filtragens, compromissos e regras, ao tranquilizar, alienam, esvaziam, tanto quanto deprimem. Selecionar o que vale à pena ser evitado, o que causa dano, é uma maneira de diminuir suas possibilidades, sua disponibilidade. É assim que se constrói o caminho da amargura, da avaliação, do medo, da melancolia: sentir que viveu e não realizou o que devia, o que queria, o que podia.