Pão e circo.1

A cidade é Libreville, capital do Gabão. O calendário assinala o dia 14 de Janeiro de 2017. Envolvidos pela vibração vinda das bancadas, 22 atletas equipados com as cores das respetivas nações preparam-se para o pontapé de saída. A Taça das Nações Africanas (“CAN 2017”) está prestes a começar.

O cenário para a partida inaugural deste importante evento desportivo do continente africano é o Stade d’Angondjé, no subúrbio homónimo de Libreville, conhecido geralmente por Stade de l’Amitié ou Estádio da Amizade Sino-Gabonesa. Este último nome é sintomático da influência das empresas de construção chinesas um pouco por toda a África, com resultados que muitas vezes nos deixam a pensar se uma ideia nefasta de “copy-paste” não estará irremediavelmente enraizada nestes contextos. No que toca a arenas desportivas, por exemplo, a China contribuiu decisivamente para a construção dos estádios da mais recente CAN, assim como os das edições realizadas na Guiné Equatorial ou em Angola, nos últimos anos.

Alguém que seja adepto de desporto e, simultaneamente, se interesse por arquitetura, não deixará de notar uma sensação de “déja vu” ao ver a maioria dos recintos desportivos de grandes competições internacionais. A contrafacção mais ou menos disfarçada parece afigurar-se como a regra no que toca a este tipo de edifício.

Sejamos justos: o Stade d’Angondjé não será o exemplar mais desinspirado desta repetição de modelos. As construtoras chinesas não serão, também, as únicas a espalhar plágios de estádios já vistos. Mas será verdadeira a noção de que estes edifícios teoricamente singulares, segundo a distinção clássica entre a habitação e os programas “excecionais”, estão atualmente remetidos à condição de expressões de banalidade?

A palavra estádio deriva do termo grego stádion, a designação de uma medida correspondente a cerca de 180 m. No século I a.C., os Jogos Olímpicos da antiguidade disputavam-se num recinto com esta medida de referência e, desde então, o termo passou genericamente a designar os lugares onde têm lugar os eventos que atualmente designaríamos como “entretenimento”. Ao longo da história das cidades ocidentais este tipo de espaço foi cimentando a sua importância, a ponto de alguns estádios terem sido o pano de fundo de imagens simbólicas dos tempos recentes. Os saltos olímpicos de Jesse Owens na clássica arena berlinense em 1936 ou a entrega do troféu do Mundial de rugby de 1995 por Nelson Mandela têm como pano de fundo arenas que se tornaram icónicas.

Talvez por estes motivos a recente arquitetura de estádios possa parecer comparativamente insípida, mas há razões pragmáticas para esta aparente insipidez. Como noutros tipos de programa, a implementação de regras rígidas de construção e segurança implica um alto grau de standardização, que diminui a margem para grandes variações. Por contraste, a grande maioria dos estádios do século XX construiu-se com um nível de planeamento muito inferior ao atual e frequentemente em fases dispersas ao longo do tempo. O resultado foram edifícios compostos, com linhas irregulares de bancadas e um caráter “informal”, como cidades “orgânicas” adaptadas às circunstâncias, ao contexto, às finanças e flutuações dos vários períodos do seu crescimento.

A este respeito, proponho aos leitores o exercício de tentar diferenciar um conjunto aleatório de estádios construídos nos últimos 15 anos, olhando apenas para imagens captadas ao nível do relvado. De facto, não haverá grandes dúvidas em reconhecer as bancadas dos velhinhos Giuseppe Meazza ou Mestalla, em Milão e Valência; mas se olharmos, por exemplo, para o novo Estádio de Lyon e o compararmos com muitos outros estádios “genéricos” do mesmo período, provavelmente instalar-se-ão as dúvidas: estaremos a olhar para A ou para B? Com efeito, o carácter do invólucro exterior das arenas afigura-se atualmente como o factor diferenciador entre as várias obras, sendo os espaços interiores remetidos para uma crescente banalidade.

Embora um estádio possa ser dotado de valências similares a outras salas de espetáculos, o seu “wow-factor” não costuma partir do projeto da concha interior, como é o caso, por exemplo, nos auditórios mais notáveis. Ver os desenhos das secções da Filarmónica de Berlim, de Hans Scharoun, ou da recente Elbphilarmonie, de Herzog & de Meuron, é um deleite e uma lição inigualável pela maioria dos projetos de recintos desportivos. Entre os mais consistentes contribuintes para o panorama da arquitetura de estádios encontra-se, a propósito, a firma Herzog & de Meuron. O seu corpo de trabalho recente mostra uma estimulante compreensão de que a arquitetura desportiva pode e deve interpretada nos mesmos moldes das restantes tipologias construtivas. Cada projeto da dupla suíça expressa um exercício sobre um “tema” arquitectónico e não apenas o cumprimento de regulamentos ou um estéril formalismo, sendo relevante que este atelier tenha no seu portefólio exemplos de diversos tipos de intervenção.

No projeto do estádio St. Jakob, em Basileia, a fusão entre os vários programas (desporto, comércio, escritórios) torna esta obra um verdadeiro edifício urbano, no qual a torre espelhada de silhueta futurista concentra estas conotações, piscando o olho à tipologia da “arena multifunções” da cultura americana. No “Ninho de Pássaro”, em Pequim, os temas associados à textura exterior tomam forma com rara densidade: neste caso, a associação entre estrutura e escultura leva ao limite a relação entre o peso (físico e visual) da cobertura e a silhueta global do edifício.

Recentemente, a dupla de arquitetos presenteou-nos com o projeto do novo estádio de Bordéus, um edifício de linhas clássicas e de airosa subtileza formal. Ao visitar esta obra, o arquiteto português Eduardo Souto de Moura destacou, em entrevista à revista Domus2, o modo como nela se evidenciava uma subtil relação entre linha curva e linha recta no contacto entre o limite superior das bancadas e a forma da cobertura. Considerando que estes comentários vêm do arquiteto que nos ofereceu o classicíssimo estádio de Braga que, pela sua inserção na topografia e pelo desenho das pendentes das bancadas nos relembra as lições dos anfiteatros gregos e romanos, concluímos que o panorama do pensamento sobre os edifícios para eventos desportivos está longe de se encontrar resignado à banalidade burocrática.

Basta que haja arquitetura.

Notas:

1Expressão satírica atribuída ao poeta romano Juvenal, usada para descrever a política romana de “entretenimento” das populações.
2Revista “Domus” nº 999, Milão, Fevereiro de 2016.