Cristina Veríssimo é Investigadora, docente e arquiteta portuguesa. Trabalhou três anos e meio com Zaha Hadid em Londres, nos anos 80. Desde 1999 está à frente do atelier CVDB Arquitetos com Diogo Burnay.
A Cristina actualmente trabalha no atelier em Lisboa e dá aulas no Canadá. Fale-me um pouco do seu percurso, como e onde é que tudo começou?
Desde sempre esta alma de saltimbanco faz parte da minha educação. O meu pai era militar, viajávamos constantemente para África e mudávamos de casa a cada dois anos. Portanto isto já me estava no sangue desde muito cedo. Vivi em cerca de 20 casas diferentes, que estão todas na minha memória e que me marcaram para ser arquitecta. A vivência em África foi muito importante, porque me abriu os horizontes, as culturas foram expostas de uma maneira em que eu, como criança, absorvi e senti com mais intensidade. Embora possam parecer coisas insignificantes, fazem parte dum imaginário que transponho para o mundo da arquitectura.
Actualmente existem duas coisas importantes para mim: por um lado esta ideia de que a vida vai mudando de ciclo; e por outro lado, a ideia de que cada lugar traz a sua cultura, a sua maneira de viver. Sempre que vou para um sítio diferente, procuro ser desse lugar, perceber as razões, as diferenças, o que motiva, o que se expressa e como, etc.
Depois destas experiências em África, fui para o Porto estudar arquitectura, onde voltei à história da minha infância e mais tarde acabei por voltar para Lisboa onde terminei o curso.
No meu terceiro ano do curso, fui convidada pelo Arquitecto Carrilho da Graça para trabalhar com ele, o que me proporcionou uma experiência na arquitectura muito intensa. Quando terminei o curso entrei, no que para mim, foi uma crise existencial. Estava no quinto ano e senti que o que estava a aprender não estava a ser suficiente. Após a licenciatura fiz um curso em Planeamento Urbano o que me mostrou outras coisas, outros desafios. Sobretudo o de poder trabalhar à escala da cidade em balanço com a escala do edifício a que estava habituada.
A verdade é que eu continuava com uma certa insatisfação e decidi nessa altura ir para Londres fazer cinema, algo que me atraía pela relação com a arquitectura. Apercebi-me que as escolas eram muito caras e que me teria de sustentar de alguma maneira, o que me obrigou a mudar os planos. Quando cheguei a Londres comecei a enviar o meu portfolio para vários ateliers de Arquitectura dos quais recebi várias propostas.
Quando saí de uma entrevista com uma proposta de trabalho na mão, reparei que estava na mesma rua do atelier da Zaha Hadid. Resolvi bater à porta para entregar o meu portfolio e foi a Zaha que me abriu a porta. No dia seguinte recebi um telefonema da secretária para ir ao atelier, e quando me apercebi, estava contratada.
Na altura o trabalho dela não era tão reconhecido. Quando comecei a trabalhar, a equipa era pequena e toda mais ao menos da minha idade, mas entretanto o atelier começou a crescer imenso e começaram a contratar pessoas muito mais velhas. O que é interessante é que quando bati à porta do atelier eu que fui à procura de um emprego e encontrei uma paixão. O Carrilho da Graça ainda hoje me diz que foi a Zaha que me conseguiu mostrar o que é a paixão pela arquitectura; eu não tenho essa certeza. O que eu aprendi em Portugal assimilei facilmente e tornou-se parte de mim de uma maneira muito natural e talvez por isso menos fascinante porque eu percebo a cultura, o país e as pessoas. E esta maneira de olhar para a arquitectura através do sentido do lugar, com uma sensibilidade à paisagem, ao detalhe e à construção, isto faz tudo parte do que eu sou hoje, mas por alguma razão para mim isso não chegava. O que a Zaha Hadid trouxe, foi uma visão completamente diferente e aí o fascínio aparece. Se me perguntarem se eu hoje faço coisas ao estilo da Zaha Hadid, a verdade é que não faço. Mas o método dela uso sempre.
O desafio da Zaha Hadid foi muito interessante porque era tudo muito diferente, fazíamos coisas muito diversas para além do projecto, a pintura era um instrumento diário, lidávamos diretamente com clientes de todas as nacionalidades, concursos, até a curadoria de exposições, etc. A experiência foi fascinante. Saí do atelier ao fim de 3 anos e meio quando tínhamos acabado Vitra, e isso deu o reconhecimento desejado ao atelier.
Nessa altura, pessoas com quem eu já tinha trabalhado em Portugal em Planeamento Urbano, pediram-me para ir para Macau para ser responsável pela obra do terminal de barcos que faziam a ligação entre Macau e Hong Kong. Até então não tinha tido qualquer experiência de obra. Claro que houve alguma hesitação, mas depois pensei: estas pessoas conhecem-me porque já trabalhei com elas e eu gosto de desafios, não sei fazer mas vou aprender como é que se faz! Cheguei a Macau e a obra estava um caos. Cheguei com a minha alma de arquitecta tentar resolver problemas de obra; rapidamente me apercebi que teria de desenvolver uma vertente mais política e negocial. A Obra durou cerca de dois anos e mantive-me sempre em obra a fazer o acompanhamento, enquanto estava grávida e a obra terminou dois dias antes do meu primeiro filho nascer. A partir daí, todas as minhas experiências em Macau foram experiência de obra. Surgiram depois sete arranha-céus, fiz fiscalização de obra do Manuel Vicente do Posto dos Bombeiros da Areia Preta e mais tarde coordenação e fiscalização da obra do espaço museológico das Ruinas da Igreja de S.Paulo, em Macau, cujo responsável pelo projecto é o Arquitecto Carrilho da Graça. No entanto a autoria é de um grupo alargado incluindo o Manuel Vicente.
Estas experiências todas resumem a minha procura do que é que eu queria fazer com arquitectura. Foi nesta altura e passadas estas experiências, que eu e o Diogo disséssemos que era altura de voltar para Portugal e tentar abrir um atelier. Abrimos o atelier em 1999 e começamos a ter algum trabalho e a fazer obra, e dessa obra surgiu algum reconhecimento.
São estas experiências de vida e a exposição a diferentes culturas, a diferentes maneiras de fazer e de ser, que faz com que muitas das coisas que nós façamos tenham isso mesmo: impurezas, imperfeições, mas que para nós são delicíosas! Nós não temos uma preocupação de fazermos as coisas de maneira diferente, mas a preocupação é revermo-nos e envolvermos as pessoas nas coisas que fazemos.
Ao mesmo tempo que abrimos o atelier, continuava a sentir uma certa inquietação de querer saber mais e de expandir a minha cultura arquitectónica. Eu sempre quis perceber o que é que está por trás do fazer, quais são os pensamentos e filosofias por trás da arquitectura para eu própria enriquecer. Decidi então tirar um mestrado e foi quando me candidatei à Universidade de Harvard.
Comecei a dar aulas por causa de um desafio que o Duarte Cabral de Mello me fez. Nunca tinha pensado dar aulas, mas a pedido dele, fui substitui-lo, enquanto ele recuperava de uma operação.
Actualmente estou a dar aulas no Canadá, mas eu fui para lá por causa do Diogo. Ele candidatou-se para ser director de uma escola e foi selecionado; coincidiu com a altura em que deixei de dar aulas na Faculdade de Arquitectura de Lisboa e então candidatei-me para dar aulas lá. Neste momento damos aulas no Canadá enquanto temos o atelier em Lisboa, o que exige um ritmo e hábitos bem definidos para coordenar ambos.
O Canadá foi outro desafio e para mim a construção em madeira tem sido um fascínio. Eu sou muito hands on, gosto de construir, de perceber como é que uma coisa abstrata se consegue concretizar em algo palpável e como é que eu faço essa tradução. Portanto nesse sentido a construção em madeira tem sido uma atração fantástica e tenho aprendido imenso. Não só a nível tecnológico mas também no que diz respeito aos diferentes tipos de madeira e as suas especificidades.
Quando olho para o meu percurso, apercebo-me das diferentes valências da arquitectura e dos desafios que já tive, eu sei que escolhi a profissão certa.
A Cristina tem desenvolvido investigação em torno da cortiça como material na construção. Em que ponto está a investigação?
A minha investigação em cortiça começa com a minha Tese de Mestrado em Harvard. É um tema que não larguei mais desde essa altura. Na universidade do Canadá tenho organizado workshops através da disciplina Free Labs em que os alunos vêm para Portugal trabalhar com este material, para construir com cortiça natural ou cortiça como material compósito. A cortiça, pelas características inerentes, cativa facilmente as pessoas e isso permitiu que para além da investigação que eu tenho desenvolvido nessa área, que tenhamos tido já a oportunidade de utilizá-la em projectos nossos.
O que é que gostava de ver na arquitectura?
Diria que gostava de ver sobretudo paixão no que se projecta. Se a paixão existe o resto vem por acréscimo, mas não é menos importante. Os arquitectos portugueses têm uma sensibilidade ao detalhe: a junta, os alinhamentos, etc. Entendem como se passa do desenho para a construção o que é importante.
Gosto ainda da ideia que cada tempo tem a sua arquitectura e que ela é um legado para as gerações seguintes. Acredito que a tecnologia e a inovação possam dar um grande contributo a esse legado, mas isso não faz só por si as transformações nesta área. Tem que haver um pensamento, uma disciplina e uma adaptação. A inovação é inerente à arquitectura e temos que estar atentos e em constante mutação para perceber o que é que procuramos para oferecer no presente para o futuro.