Quebrou o meu retrovisor! Qual a necessidade?
Dentre todos os desafios que o trânsito de São Paulo nos impõe, diria que trafegar pelas duas marginais (dos rios Pinheiros e Tietê) durante o horário de rush seria o maior deles. O mais angustiante, pois requer uma dose extra de atenção. Há outras vias irritantes, mas normalmente a causa é “apenas” o congestionamento.
Pela manhã necessito fazer sete voltas até alcançar o acesso da ponte que me leva às pistas da Marginal Pinheiros do lado de Santo Amaro. Pareço estar num labirinto circular indo e vindo nas mesmas ruas e avenidas. São Paulo tem dessas coisas, você quer ir para a esquerda, mas antes, com certeza, terá que fazer um contorno que pode variar entre um e três quilômetros à direita. Desde meus primeiros contatos com a cidade, brincava que parte do seu trânsito seria em função dos contornos que precisamos dar para acessar o destino pretendido.
Alguns desses retornos funcionam como represas do excesso de veículos que necessitam seguir reto, porém à frente existe um cruzamento com outra grande avenida. Então, o que fazer? Cria-se um bolsão para represar parte do trânsito! Um deles é o bolsão ao final da Avenida Juscelino Kubitschek em direção a Marginal Pinheiros. À frente há o cruzamento com a Avenida Chedid Jafet. Para amenizar o congestionamento na Juscelino, desvia-se o fluxo que tem como destino a Marginal Pinheiros ou a própria Chedid para a Rua Professor Geraldo Ataliba. Pronto! Ficamos ali represados até conseguirmos avançar.
Quebrou o meu retrovisor! Qual a necessidade?
Chegando a Marginal Pinheiros, precisamos decidir se pegamos a pista local ou a expressa. Diferentemente das pontes antigas que conectavam bairro a bairro, a maioria das pontes mais novas agora te tiram do bairro, mas te jogam na Marginal e você que busque uma próxima rua para entrar no bairro do outro lado.
A Marginal Pinheiros possui três velocidades. Na pista expressa o limite máximo permitido é de 90 km/h e a pista local oscila entre 50 e 60 km/h. A pista local possui entre três e quatros faixas, dependendo do trecho. Na faixa ao lado da calçada é permitido trafegar até 50 km/h e nas demais pode-se chegar a 60 km/h. Confuso?
A Marginal Tietê é pior! Lá existem três agrupamentos de pistas: a expressa, a do meio e a local, sendo a velocidade máxima permitida oscilando de 90 km/h, 70 Km/h e entre 50 e 60 km/h, respectivamente. O pior é escolher em qual agrupamento de pistas você quer ficar, pois se perder alguma saída terá um trabalho adicional para retornar ou ficará preso num congestionamento maior. Só o “Santo” Waze na causa!
Imagem 1: Engarrafamento de motos e carros na Marginal Pinheiros, São Paulo, Brasil.
No final da ponte para acessar a pista local da Marginal Pinheiros invariavelmente nos deparamos com o caos matinal diário. Começando com os carros que pretendem pegar a alça de acesso para a pista expressa a esquerda, mas se posicionam a direita atrapalhando quem pretende pegar a pista local. Entrando na pista local, costumo brincar com meu filho “entrando na via intergaláctica!”.
Na “via intergaláctica” teremos que redobrar a atenção!
Há os carros lentos para mudarem de faixa. Há os rápidos demais. Há a faixa exclusiva para ônibus. Há a fiscalização eletrônica de velocidade, mas está pouco importa, pois é naturalmente difícil ultrapassar o limite permitido. O que importa mesmo? As temíveis motos e sua faixa imaginária entre a terceira e segunda faixa. Você precisa, logo cedo, processar todo o seu conhecimento intuitivo de física para calcular a distância e a velocidade possível para mudar de faixa entre um carro lento, outro rápido e a fila de motos que se aproxima.
Buzinam! E como buzinam! Como cavaleiros medievais avançam de forma abrupta, ríspida e impaciente, repelindo a todos que se aventurem em lhes ultrapassar. Suas lanças? As poderosas buzinas! Ninguém deve ousar atravessar a sua faixa imaginária enquanto estiverem trafegando por elas e para que isto fique bem claro buzinam, buzinam e buzinam. In-can-sa-vel-men-te!
As motos e a faixa exclusiva dos ônibus formam um combo arriscado para os automóveis na pista local. Elas funcionam na faixa ao lado da calçada entre as 6:00 e 9:00 e 17:00 e 20:00. Nada contra a faixa exclusiva! Sua existência é legítima, afinal deve-se priorizar o transporte público, principalmente nos horários de pico. O problema é a limitada demarcação para que os outros veículos possam acessá-la e entrar no bairro. Há pontos que parecem ter menos de 10 metros.
Agora imaginem: a colossal quantidade de veículos, congestionamento, carro lento, carro rápido, motos, faixa imaginária, 60 km/h, 50 Km/h, pequeno trecho para atravessar a faixa exclusiva de ônibus e entrar numa rua do bairro... Não é um perfeito combo aritmético?!
Existe uma distância confortável entre a saída da ponte que utilizo e a rua em que devo entrar para o bairro, mas atravessar a faixa imaginária requer uma atenção hercúlea! A penalidade para o erro? Qual erro? O momento em que você acreditou que o motoqueiro lhe daria passagem e mudou de faixa em sua frente, só que ele não gosta e lhe aplica a penalidade máxima...
Reduz a velocidade, quase parando por alguns segundos, te olha feio e começa a proferir inúmeras frases e palavrões: “Cego! Filho da puta! Burro! Imbecil! Chega seu carro para lá idiota!”. Se avolumam com outros companheiros momentâneos e então...
Acontece o meu incidente: um outro motoqueiro passa e dá um pontapé no meu retrovisor esquerdo, quebrando-o e proferindo zilhões de palavrões! Penso:
Quebrou o meu retrovisor! Qual a necessidade?
Começo a encará-lo com firmeza, perplexidade e autocontrole das emoções para que não exploda às 7:00 da manhã, afinal o dia está apenas começando. Por dentro também sou uma explosão de xingamentos. Me vem à cabeça uma cena do filme “Eu sei que vou te amar” (1986) do Arnaldo Jabor, em que o ex-marido imaginando que a ex-esposa já tinha saído da casa começa a proferir pragas contra ela gritando: “Vai! Vai! Vai sua piranha! Tomara que o caminhão da Coca-Cola que esteja descendo a ladeira te atropele!” (ou alguma frase semelhante).
Mais alguns segundos e ele, diferentemente dos cavaleiros que seguiriam batalhando até que um fosse derrotado, covardemente segue seu caminho na pista imaginária e eu ficarei ali retido no congestionamento aguardando o momento de conseguir entrar na última faixa e, por fim virar à direita numa rua do bairro.
Neste momento, preso a minha carroça e incapaz de me defender, me restam apenas as opções das mil pragas contra a vil ação. Tento me acalmar me lembrando de uma frase que aprendi em Caracas que resume estes comportamentos sociais raivosos e hostis: “ressentido social”. Pois, deve ser um ressentido social. Imagina que por estarmos no carro temos uma situação melhor e então desfere a sua fúria, frustração e revolta contra o primeiro que ouse a afrontar a sua primazia de utilização da faixa imaginária.
Não adianta! Sigo rogando pragas!
Para tentar me acalmar, recordo que liberar a raiva não é a melhor opção. Lembro do filme “Um dia de Fúria” (1993) de Joel Schumacher, onde o personagem do Michael Douglas perde o controle e sai cometendo barbaridades pela cidade. Penso na série “Treta” (Netflix; 2023) de Lee Sung Jin, onde os personagens principais cometem atrocidades em função de um desentendimento bobo no trânsito.
Minha raiva segue aumentando quando lembro que há alguns anos presenciei uma cena parecida, onde um idoso também teve seu retrovisor quebrado por um motoqueiro em situação semelhante. Me pego imaginando se ele me viu como um idoso indefeso. Ainda não sou um idoso! E nem aquele idoso merecia tamanha grosseria!
Lembro que sou soteropolitano e aprendemos desde cedo que em alguns momentos só nos resta relevar. Então fico repetindo zilhões de vezes: Releve! Releve! Releve!
Agradeço à Deus de estar preso na minha carroça! O que forçadamente me impede de perder o autocontrole.
Começo a esquecer as pragas, afinal não é muito cristão. Por fim, entro na última faixa e acesso a rua do bairro.
O dia passa, volto para casa e na garagem encontro um dos meus vizinhos que possui uma moto. Ainda um pouco irritado relato para ele o incidente dizendo que um “companheiro” dele havia quebrado o meu retrovisor. Ele me responde: “Não foi um motociclista! Foi um motoqueiro!”
Me dou conta que nem sabia desta diferenciação linguística! Reflito que talvez ela se some a expressão “ressentido social”, o que me leva a concluir que ambas sejam classistas.
Para manter a minha sanidade e esquecer o incidente, lembro de outra cena do mesmo filme do Jabor para me recompor através da reflexão sobre humildade: “Somos todos tubos processadores de merda!”
Melhor relevar!