A mais brasileira de todas as festas é repleta de manifestações que têm potencial para representar o retrato vivo do nosso povo, das nossas crenças, da nossa beleza. Um festival de cores e sons, que mistura referências de diversas origens, onde todo mundo é bem-vindo e a gente pode ser quem bem entender, onde a sexualidade não precisa ser um tabu, onde negros ocupam posições de destaque e prestígio enquanto mulheres e homens dividem os holofotes em pé de igualdade. Onde as plumas e temas folclóricos que remetem orgulhosamente às nossas origens indígenas reinam soberanos.
Pena que só sejamos assim cinco dias por ano. Porque no resto do tempo a gente tende a ser bem conservador, misógino e aceita que as religiões neopentecostais se apoderem do nosso Estado, que deveria ser laico. A gente xinga o governo na hora de pagar o décimo terceiro da empregada e fica surpreso quando uma menina negra de escola pública passa em medicina. Destruímos sem piedade os povos nativos da nossa terra dilapidando suas reservas. Atacamos e humilhamos de forma cruel aqueles que discordam de nós nas redes sociais. É um retrato muito feio, não é mesmo?
Por essa razão, aqui vão algumas sugestões de coisas que podemos fazer com esses maravilhosos dias de folga entre uma folia e outra para ajudar a abrir a nossa cabecinha durante os outros 360 dias do ano e redescobrir de onde viemos nós, filhos desta bela e vasta nação e, quem sabe, ressignificar culturalmente o que é nascer, crescer e ser dessa nossa pátria amada, Brasil.
Para aquecer, você pode começar com a leitura do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. É um texto curto, que você vai demorar apenas uns 10 minutos para ler, e que utiliza uma miscelânea pra lá de interessante de referências intelectuais (que vão de Montaigne à Francis Picabia) para retomar características primordiais da nossa formação cultural.
Um texto potente que enaltece as nossas raízes mais profundas e originárias (a Pindorama indígena), trazendo à tona elementos chave da nossa identidade cultural, e explicando como a assimilação de novas culturas é naturalmente - e ancestralmente - absorvida (deglutida) e transformada em algo novo e exclusivamente nosso. Nessa linha, também leia o glorioso Macunaíma de Mario de Andrade e pare de reclamar que “não dá pra entender nada”. Dá sim, e, aliás, é extremamente engraçado.
Terra em Transe é uma contundente alegoria política concebida por Glauber Rocha nos idos dos anos 60. Ele chamou o país fictício retratado no filme de Eldorado, mas fica muito claro de que país ele está falando. Aliás, Rocha fala das relações de poder na América Latina em geral, toca na questão do populismo, da violência do Estado, da corrupção, enfim, de todas essas coisas que nos tem feito vociferar uns com os outros em ambientes virtuais, escondidos atrás das múltiplas telas através das quais nos comunicamos. Tem uma cena alucinante numa praia, que evoca o descobrimento e a missa inaugural no Brasil, mas com a presença anacrônica e repleta de simbologia do ditador de Eldorado (representado por Paulo Autran – nem preciso dizer o brilhantismo dessa atuação, né?). Reserve duas horas do seu feriado e pire, porque essa é realmente uma obra-prima.
Para terminar nossa listinha e não sobrecarregar seu carnaval, você já conhece o Museu Afrobrasil? Pois deveria. Além do museu contar com um acervo rico e bem articulado, esta é a única instituição cultural no país que conta a história do Brasil pela perspectiva da imigração africana. Recomendo veemente a visita mediada – um banho de história não eurocêntrica e conhecimento humanizador, que vão ajudar você a questionar seus valores e se despir de preconceitos. Você perceberá que negro ou não, todo brasileiro tem a cultura de origem africana no seu DNA: é inerente e indissociável à nossa comida, às nossas festas, à nossa religiosidade, à nossa arte, ao nosso modo de ser. O museu não abre às segundas-feiras, mas aos sábados a entrada é gratuita. Além de tudo, fica dentro do parque do Ibirapuera, ou seja, um baita programão pra dar uma espairecida entre uma festa e outra, e ainda ficar mais inteligente.
Bom carnaval, e vamos lá deixar esse 2017 menos racista, mais humano e mais colorido.