Estranho arco de vida e arte o que une Almada «Futurista e tudo», Narciso do Egipto da provocante juventude, ao mago hermético certo de ter encontrado nos anos 40, «a chave» de si e do mundo no «número imanente do universo»
(Eduardo Lourenço)
Há temas fortes, que atravessam a história da cultura, sucessivamente colocados e reconfigurados pelas civilizações, pelos regimes políticos, pelos códigos e paradigmas éticos, estéticos e científicos, sem sofrerem a erosão da sua pertinência, sem nunca terem uma resposta que em qualquer momento ou paradigma se considere ser a síntese, a resposta ou a equação do conhecimento sobre eles. Temas cuja configuração no saber do tempo é sempre por ele considerada provisória e insuficiente, implicando em si uma zona de mistério que favorece hipóteses eventualmente defendidas por convicção ou como artigo de fé. Temas em que revemos o que faz do homem um ser singular: lúdico (Philippe Ariès), imaginante (Gaston Bachelard, Edgar Morin), mas, acima de tudo, capaz de genialidade, de “golpe d’asa” (Mário de Sá-Carneiro) na sua ânsia de ser “além”, ou no seu desânimo de ser “quase”, melancolicamente inscrito nas suas circunstâncias (Melancolia I, 1514, de Albrecht Dürer), tema que me ocupará noutro momento. Um ser capaz de ser Prometeu, roubando o fogo aos Deuses, ou Fausto, vendendo a alma ao Diabo, ou Ulisses, aventureiro e empreendedor com manha e engenho…
Mesmo colocando entre parênteses a génese do mundo e do homem, deixando-a presa à controvérsia de perspectivas e à diversidade dos mitos, descendo ao plano da história da humanidade, verificamos que a criação, em qualquer das suas manifestações, arrasta consigo uma constelação conceptual cuja definição dependerá, sempre, da perspectiva e do conhecimento da época e da comunidade, da intersecção das coordenadas tempo, espaço e sujeito. Algumas das estrelas dessa constelação, tópicas da sua fenomenologia são: inovação, genialidade, transformação.
Em breve, estarão no mercado duas obras dedicadas ao processo criativo: Fabricar a Inovação. Processo Criativo em questão nas Ciências, nas Artes e nas Letras e Entre Molduras , que coordeno com Fernando Cristóvão, e A Metamorfose nas Artes, nas Letras e nas Ciências, que coordeno com Dionísio Vila Maior. Cada uma delas é constituída pelas reflexões que 27 especialistas de diferentes campos do saber foram desafiados a fazer sobre o tema: qual a natureza e a fenomenologia do processo criativo?
A primeira delas contempla, também, uma homenagem ao Escultor Charters de Almeida, sinalizando o seu itinerário criativo a partir do seu primeiro confronto com os projectos propostos, passando pela ensaística do pensamento e do traço (esboços).
No final do ano, o Congresso Internacional GÉNIO. Ciência, Arte, Filosofia (Lisboa, 23-25/11/2017) dedicar-se-á ao tema, reunindo a academia e instituições das Artes, das Letras e das Ciências, de certa forma, preparados por congressos de 2016 sobre a(s) Utopia(s) e os grandes autores (Cervantes, Shakespeare, etc.) de que falei em crónica anterior.
Se percorrermos as livrarias, verificamos que a edição está a evidenciar diversas vias de entrada nesse problema eminentemente humano, fascinante por isso, obsessivo pelo mistério que comporta, inacessível pela mitologia que o envolve, complexo pela fenomenologia da surpresa que o caracteriza. Percorrer essas entradas é compreender como é que a actualidade procura cartografar o que, por definição, reconhece escapar-lhe…
Ensaiemos esse folheio, assinalando, pela “boa vizinhança” bibliográfica (Umberto Eco, Jorge Luís Borges), as perspectivas ou equações através das quais se tenta sondar o insondável.
- Buscando no verbo vencedor o sinal do itinerário vitorioso. Vencer - Citações e Pensamentos dos Grandes Vencedores, de Paulo Neves da Silva. Cerca de 2000 ditos na primeira pessoa (“declarações de vencedores de todos os tempos em inúmeras áreas, com destaque para os protagonistas mais recentes, permite[m] ao leitor ficar com um melhor conhecimento dos caminhos que levam à vitória e ao sucesso”, diz a contracapa), evitam o termo ‘génio’, embora a criatividade e afins tenham forte representação.
- Comparando a inteligência humana e a artificial na inquirição do salto da diferença que a emoção pode potenciar. Bioinformática. Simulación, Vida Artificial e Inteligencia Artificial, de R. Lahoz-Beltra.
- Procurando na geografia a origem e as razões do que parece ser uma concentração e maior densidade de casos. Geografia dos Génios [A Search For The World S Most Creative Places from Ancient Athens To Silicon Valley], de Eric Weiner, reconhecendo que “certas configurações urbanas podem conduzir a uma genialidade altamente criativa”, simula pretender responder à irónica pergunta “O que está no ar destas cidades, podemos engarrafá-lo?” (contracapa). O vídeo de apresentação e a entrevista complementam-no.
- Elegendo a interdisciplinaridade dentre os factores mais directamente responsáveis. O Efeito Medici. O que nos podem ensinar os elefantes e as epidemias acerca da inovação, de Frans Johansson.
- Listando as personalidades, os casos, exemplaridade onde se procura o denominador comum. Génio. Os 100 autores mais criativos da história da literatura, de Harold Bloom, ou Einstein & Oppenheimer. O Significado do Génio, de Silvan S. Schweber.
- Colocando a tónica não na ruptura, mas em conceitos geminados, inscritos no mesmo campo simbólico.
- A inovação. Salientando os casos: Inovadores. Os génios que inventaram o futuro, de Walter Isaacson. Destacando os Top +
- Buscando reconhecer um padrão de pensamento: Pense Como Um Genio: Os Sete Passos Para Encontrar Solucoes Brilhantes Para Problemas Comuns, de Raimon Samso.
- O pioneirismo. Organizando uma cronologia, afinal, uma hermenêutica da história da cultura, quer genérica (Pioneiros, de Felipe Fernández-Armesto), quer por disciplina (Os Pioneiros Do Desenvolvimento Economico, de K. S. Jomo, Pilares da Medicina. A construção da Medicina por seus Pioneiros, de Carlos Antonio Mascia Gottschall, etc.).
- A criatividade. Abordando-a de diversos pontos de vista. Criatividade. Espremendo a laranja, de Pat Fallon e Fred Senn, Criatividade e Inovação. Como adaptar-se às mudanças, de Lygia Carvalho Rocha, A Criatividade Como Disciplina Cientifica, de Fernando Cardoso de Sousa, Criatividade. Descobrindo e encorajando: contribuições teóricas e práticas p/as mais diversas áreas, de Solange Muglia Wechsler.
- Fazendo um levantamento disciplinar dos grandes problemas e de quem os resolveu. Por exemplo, na Matemática: Journey through Genius: the great theorems of mathematics, de William Dunham.
- Elaborando uma galeria de referências mais consensuais. P. ex., listas como as de colecções “Génios do Mundo”1 ou “Os Imortais da Ciência” (Dos pré-socráticos a Einstein, Heisenberg, Feynman e Murray Gell-Mann) 2.
- Acreditando que a dimensão do extraordinário está inscrita na mais comum banalidade do nosso quotidiano. O Génio da Garrafa. A química fascinante do dia-a-dia, de Joe Schwarcz.
- Associando o tema a outros que exijam inventividade, capacidade de resolução de desafios, muitas vezes, imprevistos, como é o caso do Empreendedorismo. Empreendedorismo e Inovação, de Soumodip Sarkar ; Inovação & Empreendedorismo. Ideia - Informação - Implementação – Impacto, de João M. S. Carvalho ; Inovação e Empreendedorismo, de Joe Tidd e John Bessant; Educação para o Empreendedorismo - cartas a um professor…O triunfo dos empreendedores, de Francisco Banha.
- Partindo numa jornada sem bússola a não ser a da observação do processo. Criatividade. Como vencer as forças que bloqueiam a inspiração, de Ed Catmull, O Processo de Inovação. Como potenciar a criatividade organizacional visando uma competitividade sustentável, de António Carrizo Moreira e José Dantas, Click! Como funciona a criatividade, de Julie Burstein.
- Recuando à infância, à génese do génio. Descritivamente. Imaginação e Criatividade na Infância. Ensaio de psicologia, de Lev Semenovitch Vygotski e João Pedro Fróis. Ou pedagogicamente, promovendo uma nova atitude. Espere o Inesperado (Ou Você não o Encontrará). Uma ferramenta de criatividade, de Roger Von Oech.
- Querendo disciplinar o surpreendente, gerir o imprevisível, racionalizar o que parece ter uma lógica diferente. A Arte da Guerra na Criatividade e Inovação, de João Alberto Catalão, A Gestão das Ideias. Da Criatividade à Inovação, de Luc de Brabandere, A Resolução Criativa do Problema. Guia Para a Criatividade e Inovação na Tomada de Decisões, de David O'Dell, Criatividade: Conceitos, Necessidades e Intervenção, de Maria de Fátima Morais e Sara Bahia. Ou querendo potenciá-la. Mandalas para Desenvolver a Criatividade e Plataforma das Artes e da Criatividade, ambas colectivas.
- Relacionando com a cultura e inscrevendo-a nela. O Despertar da Cultura. A polémica teoria sobre a origem da criatividade humana, de Blake Edgar e Richard Klein, Criatividade e Instituições. Novos desafios à vida dos artistas e dos profissionais da cultura, de Vera Borges, Medidas de criatividade. Teoria e prática, de Eunice M. L. Soriano Alencar.
Catorze temas, cada um deles atraindo para vasto, intrincado, labiríntico itinerário, a que não faltam geminações nem “boas vizinhanças”, pragmatismos ou teorizações, hipóteses e exemplos, com a surpresa a cada passo, como nos velhos e irresistíveis comboios-fantasma.
Poderia continuar e enunciar temas na vertigem das listas (Umberto Eco) que nos domina nestas inquirições, pois, mais do que uma constelação, a imagem mais rigorosa seria ‘galáxia’: com centros gravitacionais, forças de atracção, rotas circulares e elípticas, corpos de densidade e natureza diferente… afinal, o que a cultura humana foi valorizando como impulsionar da sua dinâmica e da sua evolução. A dimensão dos que (des)conhece e que, como nos velhos mapas, deseja assinalar: linhas litorais, bestiários suspeitados no interior e fabulário de viagens…
… afinal, como dizia Longanesi,
O pior que pode acontecer a um génio é ser compreendido.
Notas
1 Albert Einstein, Galileu, Pasteur, Marie Curie, Mozart, Ludwig Van Beethoven, Leonardo Da Vinci, Pablo Ruiz Picasso, Van Gogh, William Shakespeare, Sócrates, Mahatma Gandhi, etc..
2 As descobertas dos filósofos pré-socráticos, do matemático Euclides (330-260 a.C.), dos astrónomos Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564- 1642) e Johannes Kepler (1571-1640), dos físicos Isaac Newton (1642-1727), Michael Faraday (1791-1867), James Clerck Maxwell (1831-1879), Albert Einstein (1879-1955), Erwin Schrödinger (1887-1961), Edwin Powell Hubble (1889-1953), Werner Heisenberg (1901-1976), Richard Feynman (1918-1988) e Murray Gell-Mann ( 1929 - ), e dos geneticistas James Watson (1928 - ) e Francis Crick (1916-).