Um amigo falou-me com lágrimas guardadas na alma. Lágrimas que sabe não poder verter por conceder vitória aos desgraçados que criam enxurradas de dor a quem não sabem sequer o nome. Um casal homossexual foi agredido durante a noite por mulheres e depois, não fosse suficiente, por homens. Continuo a ficar boquiaberta com estas situações. Sei que não deveria com a quantidade de crueldades que acontecem, mas o que fazer? Sou uma crente incurável. Na justiça, na igualdade, na integridade, no progresso, nas infindas janelas da alma que se reconstrói a cada passo. Fico indignada com discursos de compreensão, paciência e generosidade. Picasso dizia que uma das coisas que o angustiava era colocar nos seus quadros todas as coisas que o apaixonavam. Simultaneamente, elas tinham que caber todas. “O pior é para as coisas… pois têm que se dar bem umas com as outras.”
Ora, façamos de conta que a existência de todos nós cabe num quadro. Que todos somos criação apaixonada de Picasso e que, angustiadamente, temos que coexistir na mesma dimensão universal. Haverá coisas que têm algum direito supremo sobre as outras coisas de demarcar o seu território, a sua vontade ou a sua justiça? Haverá coisas que regulam a sua existência e, por caridade e real sapiência, fazem o obséquio de tolerar a coexistência com as outras? Porquê? Porque chegaram primeiro? Porque são um exército de coisas iguais e a união dos iguais faz a desunião dos diferentes? Não. Não, não e não. Picasso gosta de todas as coisas, é apaixonado por todas as coisas. Não há cronologia, identidade ou aparência que eleve uma coisa acima da outra. Fazendo a transição da metáfora para o real, não há nenhum ser que, por qualquer que seja o motivo, tenha mais legitimidade do que outro de existir num espaço que foi criado sem preconceitos. Os discursos de compreensão, paciência e generosidade são só mais um bocado de lenha para atear esta fogueira de caça às bruxas. Nenhum de nós tem que compreender (claramente como sinónimo de condescendência!) o facto de duas pessoas se amarem, se relacionarem, interagirem. Ninguém concedeu esse direito hegemónico a ninguém. Nenhum de nós tem que ter paciência (como sinónimo de pena!) para demonstrações públicas de afeto, casamentos e adoções. Porque a igualdade não é acreditar que temos direitos iguais até um certo limite.
Acreditar na igualdade é acreditar que dois seres são iguais no seu nascimento, na justiça, na dignidade da vivência, nos direitos que o mundo livre trouxe à modernidade. Nenhum de nós tem o direito de olhar como um ato de generosidade (como sinónimo de superioridade complacente!) a convivência e existência de pessoas diversas no mesmo espaço. Se realmente se acreditar na justiça, na igualdade e na integridade este pensamento não é sequer construído nas nossas mentes e nos nossos corações. Um amigo falou-me com lágrimas guardadas na alma. Respondi-lhe com lágrimas embrulhadas em raiva. Respondi-lhe com a certeza de que as tragédias últimas não serviram de nada, não ensinaram nenhuma lição. Com a certeza de que enquanto a condescendência, a pena e a superioridade forem mascarados como compreensão, paciência e generosidade não chegamos a lado nenhum. Não compreenderemos que não temos nada a “tolerar”, como se alguém invadisse o nosso espaço e nós fossemos bondosos em deixar. Hipócritas, nós. As coisas foram postas simultaneamente no quadro, terão que coexistir, não existem coisas mais importantes do que outras. Não existem pessoas que decidam que umas merecem andar na rua com mais segurança e dignidade do que outras. Somos párias, hipócritas dos tempos modernos, mentirosos viscerais.
Quem são estas mulheres que nada de justo, de digno, de honroso lhes corre nas veias? Quem são estes homens que acreditam que a virilidade ainda é valorizado como traço de uma personalidade superior? Há muitas mulheres e homens como estes. Não sei se olham para trás e se orgulham e o fariam outra vez. Não sei se esperam que os seus filhos sejam justos, íntegros e corajosos. A minha desesperança diz-me que, talvez, o resultado de falhados existenciais esteja condenado pela mesquinhez da ignorância. Pobres coitados, espero que não. Espero que um dia as lições sejam estudadas e aprendidas. Espero que os filhos não se tornem um espelho destes pais, que a história não se repita indefinidamente, que a leviandade não seja vitoriosa. Que, pelos justos que existem no mundo, nenhum amigo me fale com lágrimas guardadas na alma.