Por onde começar? O ano nem terminou e 2016 já é histórico por razões por vezes difíceis de acreditar. Diante desse redemoinho de fatos sociais extremamente complexos e surpreendentes, vemos as nossas convicções abaladas e todas garantias humanas, que pensávamos ter conquistado ao longo do século XX, se esvanecerem feito fumaça. O chão se abre sob os nossos pés, e, imersos neste abismo, não nos resta muito a fazer a não ser (citando indiretamente a Victor Hugo) conversar.
Portanto, vamos conversar sobre a nossa Bienal. É uma edição bastante engajada, sem dúvida. Incerteza Viva propõe reflexões sobre a nossa relação com a natureza, com os espaços geográficos e sociais que ocupamos enquanto espécie que habita o planeta. São diversas perspectivas que dialogam dentro desta proposta, que vão desde o impacto ambiental da ocupação humana, como no relógio climático feito pela artista Ruth Ewan, às cartografias políticas esboçadas por Öyvind Fahlstrôm. Além disso, esta Bienal sai do plano do discurso e parte para ações concretas, como a escolha do restaurante instalado no mezanino (cujo cardápio vegetariano reflete valores de cuidado com o meio ambiente) e da manifestação anti-governista dos organizadores quando da inauguração.
No entanto, podemos dizer que o maior radicalismo, e a faceta mais importante da proposta de Incerteza Viva, é colocar em cheque as nossas fronteiras, físicas e imaginárias, pois a fronteira tem sido, sem sombra de dúvida, o maior elemento desestabilizador do nosso momento histórico – dos refugiados ao muro hipotético entre México e EUA.
A partir dessa ideia podemos entender (talvez) como um vídeo como Bom Bom’s dream dialoga com a linha narrativa desta bienal. Principalmente se formos capazes de nos aproximamos da obra com a mente bem aberta e uma boa dose de bom humor, longe da seriedade e solenidade próprias da soberba do “bienalismo”.
Bom Bom é uma dançarina japonesa, rainha do dancehall (ritmo popular jamaicano derivado do reggae), nesta obra onde ficção e realidade se perpassam. O vídeo realizado pelo artista Jeremy Deller em conjunto com a coreógrafa Cecilia Bengolea, acompanha Bom Bom (que é uma pessoa real, e não só uma personagem) na Jamaica. A protagonista veste um figurino mais do que peculiar composto de um body com tiras, meia estilo arrastão e cabelos coloridos, e com essa indumentária ela vai para todas as partes. Ela tem grandes sonhos: ser consagrada a rainha do dancehall. Com esse propósito, ela se dirige a uma alucinante competição de twerk realizada no estacionamento de um shopping.
Bom Bom enfrenta suas rivais, as jamaicanas, em paridade. O chão está recoberto de poeira, mas isso não impede as dançarinas de praticarem as mais inimagináveis manobras. As pernas para cima, em movimento frenético arrancam alguns risos na sala escura. O DJ/locutor põe lenha na fogueira e a disputa se intensifica. Mas não tem para ninguém, a noite é de Bom Bom, e, no final dessa competição onde as fronteiras se diluem até a dissolução completa, ela derrota as jamaicanas em sua própria casa, numa dança que é de autoria e domínio delas. Exultante, imunda de poeira, vitoriosa, exibe o seu prêmio num frame que se congela: um ventilador.
Tudo isso, diga-se de passagem, com a narração esporádica de um camaleão que permeia a narrativa. Conseguiu imaginar? Qualquer que seja a sua resposta, não deixe de ver Bom Bom arrasando na pista e de visitar a 32ª Bienal de São Paulo até o dia 11 de dezembro. Seguramente, Incerteza Viva provará ter sido o lugar certo para entender, atravessar, explicar, dialogar e concluir o ano de 2016.