“I can’t feel my face when I’m with you / But I love it, but I love it, oh.”
(Excerto do refrão do tema “Can’t feel my face”, de The Weeknd, 2015)
Numa esquina perto de minha casa, impressa num cartaz de grande formato, está uma fotografia de Cristiano Ronaldo em roupa interior. Duas ruas à frente, vejo o rosto de Andie MacDowell promovendo cremes milagrosos (porque, segundo consta, “eu mereço”). Na principal galeria das redondezas, está há um mês exposta uma pequena síntese da obra de Donald Judd, na qual o texto introdutório me relembra as conquistas do abstracionismo e da “força tautológica” das diversas caixas que vou vendo.
Posso confessar: nenhuma destas três frases é verdadeira. Mas, como o caro leitor concordará, estão longe de pintar cenários inverosímeis, numa qualquer esquina, numa qualquer rua, numa qualquer galeria. Estes cenários, ainda que aleatoriamente dispostos, sublinham as mensagens presentes nos fenómenos artísticos e publicitários que nos rodeiam, normalmente suportadas por uma forte componente visual.
É certo que o chamado “panorama artístico” é variadíssimo, que a produção é (cada vez mais) inquantificável e que as tentativas de a enquadrar numa qualquer síntese são ingratas e imodestas. Efetivamente, o quadro que pintamos nunca é suficientemente extenso.
Ainda assim, arriscaria afirmar que os cenários expostos inicialmente traduzem uma questão com a qual os media contemporâneos se debatem: o valor e o significado do corpo humano no contexto das expressões artísticas e panfletárias do nosso tempo (com efeito, a sugestão de que a “arte” e a “publicidade” se juntam no mesmo campo é cada vez menos abusiva).
A comparação entre o conteúdo dos cartazes publicitários e aquele, por exemplo, das exposições em galerias de arte contemporânea e instalações públicas torna claro que, se no mundo da publicidade o papel do corpo humano está já vincado – é um veículo de identificação e, principalmente, de projeção de ambições numa relação entre consumidor e imagem -, no campo tradicionalmente denominado como “artístico”, esse papel não é tão claro.
Mais intrigante do que esta indefinição quanto à importância da figura humana na arte contemporânea é, talvez, a sensação de que se tornaram mais frequentes os casos nos quais o observador é entendido como “alvo” do objeto artístico do que aqueles nos quais a obra de arte pretende retratar uma determinada ideia de “Homem”.
Por outras palavras: vivemos numa cultura dominada pelas selfies e seus derivados, onde a imagem do corpo humano está, aparentemente, por todo o lado. No entanto, a produção artística parece fugir da representação direta da figura humana. Com a exceção da fotografia e, eventualmente, das artes vídeo – coincidentemente, os meios preferenciais das campanhas publicitárias-, a ideia de “retrato” parece ser encarada com pouco entusiasmo pela maioria dos artistas. No domínio da escultura, por exemplo, esta tendência é particularmente notória. A arte não figurativa e a instalação – provavelmente os meios de expressão dominantes nos dias que correm - baseiam-se na exploração de objetos “não humanos”, centrando-se em produzir “eventos”, mais do que “formas”, per si.
Da land art à arte cinética, das instalações luminosas de James Turrell às chapas metálicas de Richard Serra, das composições criadas por Hélio Oiticica às cada vez mais glamourosas produções de Thomas Heatherwick, a nossa cultura coletiva parece focada nesta ideia de evento e na ideia de que a perceção do corpo humano e da própria ideia de “humano” (como indivíduo ou como cultura) deverá surgir em diferido, como efeito colateral da narrativa proposta por determinada instalação. Criamos cada vez mais filtros e, como consequência, produzimos arte onde a presença da pessoa é tendencialmente intuída e quase nunca oferecida à partida.
Poder-se-á argumentar que, quanto mais sofisticada uma cultura é, menos diretas ou literais são as suas expressões de determinada ideia. Segundo a mesma lógica, e atendendo à evolução histórica do mundo da arte, compreende-se porque é que, nos dias que correm, será mais provável que se encomende uma peça escultórica ou instalação de cariz abstrato para pontuar as nossas praças do que o clássico cavaleiro de bronze. Mas pensemos o seguinte: haverá diferenças substanciais entre a nossa reação a objetos marcadamente miméticos e a objetos nos quais a presença do nosso próprio corpo é mais sugerida do que explícita? Por outras palavras, que cultura é esta em que tiramos fotografias de nós próprios a toda a hora, mas tendemos a achar que o “branco sobre branco” (desculpe, Malevich, mas teve de ser…) é a expressão mais sublime de sofisticação artística?
Será decerto fácil encontrar inúmeros casos que contrariam a minha linha argumentativa. O leitor poderá contra-atacar, apontando a recente redescoberta do pitoresco, do naïve e do kitsch, as esculturas de Juan Muñoz e de Ron Mueck ou o pujante ressurgimento da ilustração, nomeadamente em Portugal.
Mas, esticando os meus dotes de psicanalista ao máximo, lanço a ideia: a importância da conotação é cada vez mais desvalorizada nas nossas culturas mas, paradoxalmente, a emoção e a empatia são crescentemente exacerbadas pelas nossas dinâmicas sociais. Padecemos de uma tendencial aversão a tudo o que não seja quantificável, objetivo, “tautológico”; no entanto, as nossas economias são dominadas por uma subjetividade nociva que determina o “valor” das coisas palpáveis e dos bens de consumo (basta ver como funcionam as bolsas de valor para confirmar este ponto). Neste contexto, onde cabe o impressionante virtuosismo de Mueck?