Seria desejável que já no presente, qualquer professor fosse um hermeneuta-ético, mas para que tal perfil aconteça, será preciso revisitar a teoria linguística bakhtiniana, a pedagogia da autonomia de Paulo Freire e sublinhar os apelos de Paul Ricoeur no que respeita a importância da hermenêutica e da ética na construção da nossa identidade.
Relativamente a Bakhtin, saliente-se a linguagem como mediadora da relação pedagógica e o processo dialógico na sala de aula. Aí , as palavras não são neutras; logo, os discursos estão sujeitos às mais diversas interpretações, aos mais diversos contextos. Para Bakhtin “ a palavra é o fenómeno ideológico por excelência” ( 1992: 36). Assim, através da palavra, unidade básica do diaálogo, realiza-se uma interacção verbal, bem como a constituição dos sujeitos, das suas consciências e dos sentidos. Na sala de aula, cada um dos interactantes é singular, possui suas histórias de vida, uma classe social, interesses particulares, e é através da palavra que se irá exprimir, representar o seu modo de ser e estar-no-mundo. Indo ainda mais longe, e como conclui o psicólogo do desenvolvimento Vygotsky ( 1993: 131), “ as palavras desempenham um papel central, não só no desenvolvimento do pensamento, mas também na evolução histórica da consciência como um todo “ Uma palavra é um microcosmo da consciência humana”.
Observa-se, assim, o papel fundamental que a linguagem desempenha na constituição dos sujeitos e a importância da interacção verbal social no processo ensino-aprendizagem, que jamais é eticamente neutro. Mesmo quando o professor faz paráfrases, operação típica do discurso pedagógico, e explica de uma outra forma, facilitando a compreensão por parte dos alunos, já , aí, o próprio professor fez uma interpretação, uma hermenêutica que orienta para o sentido desejado, reflectindo e modificando uma determinada realidade.
Podemos, pois, concluir relativamente a este primeiro ponto que a palavra, considerada produto ideológico, carrega em si lutas, conflitos e até mesmo o peso das determinações sociais que a produziram, razão pela qual o sentido da palavra ou do discurso, de forma mais ampla, somente poderá ser compreendido se se levar em conta, tanto os sujeitos, quanto o contexto dialógico, o momento socio-histórico e as formações social, ideológica e discursiva dos interlocutores.
Note-se que no espaço da sala de aula o professor é a autoridade institucionalmente formalizada, sendo, por isso mesmo o detentor da voz autorizada nesse espaço. É ele quem ordena, questiona, distribui a fala no processo de produção de sentidos na interacção verbal. Visto que a relação professor / aluno é mediada pela palavra, a linguagem ganha um estatuto de importância significativa no processo de individuação. A relação dialógica eu / outro passa a ser fundamental no processo ensino / aprendizagem, dado que é através da palavra, do discurso, na sua forma oral ou escrita que se constroem a consciência, os valores, os conceitos, enfim, os sujeitos sociais: os cidadãos.
Deste modo, a proposta de construção de sujeitos intervenientes, críticos e transformadores, passa fundamentalmente pela valorização da voz dos alunos. Ao enunciar, o aluno constitui-se enquanto enunciador / locutor e passa a ter um papel activo no interior do espaço discursivo da sala de aula. Com isso, a voz não pertence apenas ao professor; há ubiquidade do signo ideológico material que se redistribui entre os interlocutores, existindo ainda uma troca de papeis constante, no processo intergeracional.
Essa capacidade do professor escutar, tem que ver com a pedagogia da autonomia de que nos fala Paulo Freire, cuja concepção de educação se identifica com um processo de passagem de uma consciência ingénua para uma consciência crítica. Daí a natureza ética da prática educativa, mas que pressupõe uma hermenêutica: a da interpretação do discurso do sujeito / aluno, do seu contexto, das suas angústias e dos seus desejos. Para Paulo Freire, a prática educativa necessita de fazer a “leitura do mundo”, do “contexto” em que se situa. De facto, é a leitura do mundo que imprime significado à leitura da palavra e são estas as ferramentas transformadoras do educador. Da leitura de Pedagogia da autonomia ( 1996), conclui-se que pertence a cada um de nós o poder de transformar e de construir um mundo melhor e ficamos com a convicção de que é impossível ficarmos “ indiferentes ao mundo em que vivemos, não há prática docente que não seja um ensaio ético-estético “; até porque, de uma perspectiva narrativa, nós somos histórias, biografias e segundo MacIntyre ( 1981: 213), seremos apenas co-autores das nossas próprias narrativas e por conseguinte somos , de certeza, co-autores das histórias de nossos contemporâneos.
Tal facto leva-nos à problemática interpretativa das narrativas propostas na sala de aula, sejam elas orais, ( narrativas pessoais dos professores e dos alunos), sejam escritas ( contos, romances, narrativas ficcionais). De facto, segundo Paul Ricoeur, a vida antecipa a narrativa e exige ser contada ( Ricoeur 1993). Será através da hermenêutica da narrativa que, ao identificarmos crises, conflitos, dilemas idênticos aos nossos, poderemos refazer uma auto-interpretação e compreendermo-nos melhor a nós próprios e aos outros que nos rodeiam.
Muitas vezes, as histórias, os contos, podem conter em si as soluções, as respostas para os nossos dilemas. Neste campo, quer Ricoeur, quer MacIntyre chamam a atenção para a importância da narrativa e da sua função facilitadora no que concerne a compreensão das acções humanas. Não nos esqueçamos que a interpretação conduz à auto-interpretação, segundo Ricoeur, logo, conduzirá a um processo de re-avaliação de atitudes, crenças, valores…e assim sendo, a hermenêutica da narrativa conduz necessariamente a uma leitura que não é eticamente neutra, mas que leva a uma autonomia de escolhas, de opcções de vida, de modos de ser e de estar no mundo, o que, por outras palavras, significa que a hermenêutica da narrativa pode promover o desenvolvimento moral dos alunos e isso é algo que o professor não pode nem deve esquecer.
Assim como o aluno poderá “pôr-se no lugar” do heroi do Conto ou do romance e questionar-se, também o professor poderá tentar “pôr-se no lugar” do aluno e perceber as coisas do seu ponto de vista, o ponto de vista de “ si mesmo como um outro” ricoeuriano, e tal sucedendo, estaremos perante uma verdadeira revolução hermenêutica, uma verdadeira relação dialógica na sala de aula; estaremos perante o professor do futuro: o professor hermeneuta-ético.
Trata-se de um professor que percebe que não existe sentido sem hermenêutica e que esta conduz a uma reflexão que é já uma reapropriação do nosso esforço por existir, do nosso desejo de ser e por isso mesmo ética. Para Ricoeur, o caminho reflexivo é ético e ontológico, embora metodológicamente seja a hermenêutica que permite fazê-lo e transformá-lo; e como o método faz o objecto; que o professor do futuro não esqueça esta -password: hermenêutica- para uma educação de inspiração ética. Pois interpretar é decifrar obras, mundos; o nosso, o dos outros, é compreender melhor a nossa contemporaneidade e a nossa identidade.
Exemplos de aplicação prática : História e Português
- A formação de “cidadãos” não ocorre sem reflexões sobre o seu significado. Do ponto de vista da formação histórica do estudante, a questão da cidadania envolve escolhas pedagógicas específicas para que ele possa conhecer e distinguir diferentes concepções históricas sobre ela, delineadas em diferentes épocas. A sociedade actual vive um presente contínuo, que tende a esquecer e a anular a importância das relações que o presente mantém com o passado. Daí um compromisso fundamental com a História, mais especificamente na sua relação com a memória, libertando as novas gerações da “amnésia social” que compromete a constituição das suas identidades individuais e colectivas. O direito à memória faz parte da cidadania cultural e revela a necessidade de debates sobre o conceito de preservação das obras humanas. A constituição do património cultural e a sua importância para a formação de uma memória social e nacional, sem exclusões e discriminações é uma abordagem necessária a ser realizada com os educandos, situando-os nos “lugares da memória” construídos pela sociedade e pelos poderes instituídos.
Introduzir na sala de aula o debate sobre o significado de festas, monumentos comemorativos, feriados, museus, arquivos e áreas preservadas, permeia a compreensão do papel da memória na vida da população, dos vínculos que cada geração estabelece com outras gerações, das raízes culturais e históricas que caracterizam a sociedade humana.
Área escola : proporcionar aos alunos um contacto activo e crítico com as ruas, praças, edifícios públicos e monumentos ( estudo paralelo e interactivo de História / Geografia) constitui uma excelente oportunidade para o desenvolvimento de uma aprendizagem significativa.
Tudo isto permitirá uma reavaliação dos valores do mundo de hoje, a distinção de diferentes ritmos de transformação históricas, o redimensionamento do presente na continuidade com os processos que o formarem e a construção de identidades com as gerações passadas. - A possibilidade de tomar posição, de concordar ou não com os propósitos de um texto, é um pressuposto necessário e decisivo para o exercício da autonomia e, por conseguinte da cidadania. A capacidade de descodificar e recodificar, de contextualizar conhecimentos imbrica-se com a destreza hermenêutica assim como com a crítica. O recurso do tratamento contextualizado por parte da escola pode auxiliar o aluno a desenvolver competências de mediação entre ele próprio e os diferentes conhecimentos, isto é, pode ajudá-lo a tornar-se intérprete. Essa competência de interpretação / tradução para ser completa deve poder ser pensada em duas direcções, a saber: tanto na direcção do intérprete como na do seu próprio contexto, como quando se trata de aplicar um conhecimento a uma situação determinada, no contexto do próprio intérprete.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. ( 1992). Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes.
FREIRE, Paulo. ( 1988). A importância do acto de ler. São Paulo: Cortez.
FREIRE, Paulo. ( 1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e terra.
JARDIM, Maria Antónia. ( 1998). Educação Ética e Defesa Nacional ( CDN, no prelo). Porto.
MACINTYRE, A. ( 1981). After Virtue: a study in moral theory. Notre Dame: University of Notre Dame Press.
MEC. ( 1998). Salto para o futuro: construindo a escola cidadã, projecto político-pedagógico. Brasília: Seed.
RICOEUR, Paul. ( 1983). On interpretation. Philosophy in France today, 34-48.
VYGOTSKY, Lev S. (1993). Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes.