“Será que a permanência, como único instrumento nos imaginários urbanos, realmente importa?”(1)
Sabemos muito pouco sobre a realidade que nos rodeia. Agora que choquei o leitor com esta originalíssima observação, poderei oferecer-lhe algum conforto nas minhas próximas palavras: do pouco que sabemos sobre a realidade, com alguma certeza poderemos afirmar que esta é possuída de uma natureza cíclica, nas suas inúmeras dimensões. É este carácter cíclico, quando interpretado com o devido distanciamento crítico, que nos permite esboçar a partir do incomensurável campo do desconhecido, algumas ideias que, imodestamente, tendemos a achar acertadas.
Aceitando esta reconfortante certeza da realidade cíclica, torna-se compreensível que o pensamento arquitetónico se estruture de modo similar. Assim se explica que, no espaço de dois anos, um evento fundamental do panorama da arquitetura internacional, a Bienal de Veneza, nos presenteie com duas linhas discursivas tão distintas como as das suas duas últimas edições. Em 2014, o evento de arquitetura foi dirigido pelo sempre panfletário Rem Koolhaas sob o título “Fundamentals”, propondo um processo introspetivo de back to basics, um foco nos elementos formalmente essenciais da história da disciplina. Na sua 15ª edição, a Biennale tem à cabeça Alejandro Aravena, vencedor do prémio Pritzker no ano de 2016 e uma figura aparentemente nos antípodas do astro holandês.
Aravena compôs um conjunto expositivo de grande coerência e força discursiva, com a sugestão de uma linha crítica clara e aberta. O título, “Reporting from the front”, anuncia uma interligação entre os campos da intervenção arquitetónica “pura e dura” com a sua dimensão mais explicitamente combativa, em termos sociais e políticos.
Num período em que conceitos como a sustentabilidade, a cooperação ou a participação são tão repetidos que se pode indagar sobre o seu grau de rarefação, o evento de Veneza oferece uma esperança renovada de que é possível pensar a arquitetura e o urbanismo do século XXI a partir de uma fundação conceptualmente inovadora e efetivamente humanista. Gostaria de destacar três propostas de trabalho particularmente inspiradoras, patentes nas exposições do evento.
No pavilhão principal dos Giardini, uma pequena sala com o trabalho do arquiteto Renato Rizzi confronta-nos explícita e poeticamente com a dimensão corpórea e territorial da arquitetura e dos assentamentos humanos através da representação das formas de edifícios e conjuntos icónicos, em maciços de gesso (como uma coletânea de igrejas da cidade de Veneza ou trechos de cidades europeias). A força evocativa das esculturas expostas fazem desta sala uma pequena pérola do evento.
Do lado oposto deste mesmo pavilhão, o coletivo francês LAN-architecture apresenta os seus projetos habitacionais em Bègles e Lormont. Numa exposição impecavelmente concebida e montada é possível perceber como as cidades, nomeadamente as europeias, poderão aplicar os princípios de adaptabilidade, de racionalização de recursos, de sensibilidade às culturas do quotidiano e de verdadeiro crescimento sustentado em contextos frequentemente sobrecarregados com estruturas aparentemente obsoletas.
Já no núcleo do Arsenale, a dupla composta por Rahul Mehrotra e Felipe Vera apresenta a sua interpretação da ideia de “Urbanismo Efémero”, um conceito de difícil digestão por estômagos habituados a pratos, digamos, mais clássicos. Tentar processá-lo é, ainda assim, recompensador.
Os autores afirmam inicialmente que “(…) Para as mais de 700 milhões de pessoas representadas [na exposição], a estabilidade é um luxo! A permanência não é uma condição acessível e não afeta a sua existência quotidiana. (…)”(2). Parece contraditório associar o arquétipo da cidade à ideia de uma efemeridade assumida à partida. No entanto, a investigação proposta por Mehrotra e Vera expõe o modo como esta condição está presente em diversos pontos do globo, normalmente associada a eventos como festivais religiosos ou outras celebrações cíclicas de duração limitada. Verifica-se que estes momentos estão na base de transformações territoriais cuja estrutura, escala, logística e significado constituem efetivamente uma categoria válida de urbanismo. O foco desta ideia não é portanto, o nomadismo, mas sim as formas do que poderemos chamar de “sedentarismo temporário”.
Se pensarmos que a população de Meca aumenta exponencialmente durante o Hajj, a peregrinação anual, ou que, noutros contextos, as zonas balneares e turísticas de diversos países se alteram de acordo com a temporada, constatamos que a dinâmica cíclica nem sempre está eficientemente integrada no funcionamento das nossas cidades. Estes núcleos urbanos apresentam um mesmo tecido construído nas épocas “baixas” e nas de “enchente”. Existe, portanto, um desequilíbrio entre as estruturas da cidade construída e a dinâmica da cidade habitada – sendo que a primeira é relativamente estática, enquanto a segunda é extremamente variável. Este cenário sugere diversas questões: será irrealista um cenário em que a maioria das comunidades humanas concebe as suas cidades sem ter como princípio a ideia de permanência? Até que ponto as nossas cidades poderão ser construções nas quais a renovação cíclica está mais assumidamente presente, nas quais a importância simbólica dos marcos perenes da nossa presença é diminuta, construções pensadas para viver e morrer como ondas do mar?
Notas
1 e 2 – Tradução livre de excertos dos textos de Rahul Mehrotra e Felipe Vera, presentes na exposição de “Ephemeral Urbanism” na Biennale Architettura 2016, Veneza.