O Reino Unido. Quiseram o domínio privado de um reino que, aos seus olhos, é unido. É o signo dinâmico através do qual expressam um meio social, uma “britishness” que é valiosíssima. Até agora, construíram uma montra onde expõem liberdades, pensamentos e ideias prestigiosas. Construíram um espetáculo de cores variadas, que se misturam numa paleta de ouro. Pintaram um quadro de vaidade e orgulho nacional. Emancipados, orgulhosos, atrevidos, dispostos a estender a mão a alguns e a ceder território a outros. Construíram uma casa com troféus de discursos políticos, personalidades salientes e feitos memoráveis, a título decorativo. Constituíram um Estado-nação que transmite uma realidade açucarada.
Donos do seu nariz, cerraram o punho e bateram na mesa em prol dos seus costumes e da sua cultura quando a união foi uma proposta. Mas o medo da perda de soberania, o receio das vagas de imigração incontroláveis, e o desejo de manter tradições e feições puras foram sendo expostas e notadas pelo resto do mundo. Os discursos moralistas foram sendo mistificados mas, note-se, baseiam-se em pressupostos saudosistas e xenofobos. As histórias até agora narradas por “established gentlemen”, foram envolvidas em veludo real e guiadas por instintintos oxfordianos. Abriram-se os baús das memórias, puxou-se o lustro à coroa da monarquia e sublinhou-se o direito de individualização. O sentimento nacionalista, o receio do desconhecido, a aceitação de minorias, de desprotegidos ou desafortunados foi adoçicado. Foi transmitido suavemente e sempre controlado pela diplomacia, pelos interesses económicos e pelo políticamente aceitável. E nós lá fomos na conversa da moderação. O chá das cinco, a pontualidade, o Mr. Bean, a salsicha britânica, as marchas feministas e LGBT. Tudo num “melting pot” que resultava. Aparentemente. Para nós resultava num puzzle humano e ideológico bastante completo e harmonioso. Com problemas, equívocos e discussões inerentes a um Estado-nação recheado de perspetivas e inteletualidades penetrantes, mas sempre resultou numa simbiose equilibrada.
Ora, o que travou, até agora, algumas posturas xenófobas, preconceituosas e nacionalistas do Reino Unido foi a ideia de União, de partilha de espaços e lugares-comuns. Londres como símbolo de liberdade, de desenvoltura, de aceitação. Hoje, tudo ruiu, foi tudo uma peça de teatro onde os protagonistas não têm dentes mas puseram dentaduras para conseguir desenrolar as falas. O que existe é uma ordem que é a título decorativo, uma cara que é maquilhada por profissionais, uma anarquia dos costumes que tanto temem perder e um conjunto de comportamentos superficiais.
Com a saída da União Europeia perde-se o “politicamente correto”, ganha-se espaço para exultar a superioridade do “sangue puro”, manifestar a repugnância pela diferença. Mais do que questões económicas, políticas e culturais graves, a saída do Reino Unido da União Europeia é a declaração assinada de que não há mais fretes a fazer. Nem “politicamente correto”, nem maquilhar as faces, e os desdentados são infelizes mas são britânicos!
Hasteiam-se bandeiras de discriminação, de dilaceração, de preconceitos de toda a ordem espalhados pelo território briânico. Consideram e expressam o desejo de expulsar minorias e imigrantes como se de uma sub-humanidade sem direito à vida se tratasse. Agora o puzzle já não encaixa. As peças são todas quadradas: é impossível. Não têm que narrar histórias nem dar apertos de mão com a raiva a palpitar no coração. Acabou. Descompuseram-se todos os cenários e partiram o vidro de todas as montras. É como se fosse aceitável a seleção, o ostracismo, a humilhação. Conseguiram delinear uma linha que separa o Reino Unido dos outros membros e isso significa que são donos do seu próprio país, da sua identidade, e ninguém tem nada a dizer! Quando alguns governantes fazem rascunhos de discursos dominados pelo racismo, pela xenofobia, pela homofobia é porque é aceitável. Está tudo encaminhado para que se comece a arrumar a casa. Como sempre quiseram, mas foram impedidos. Só que agora podem. Mas ninguém quer governar um lugar sem ordem, sem matizes sociais, onde o espetáculo sádico da desumanização controla a vontade e a recriação de uma identidade dá-se sem regras. É a vaidade numa identidade mitificada.