2016 é um ano rico de evocações, já anunciadas e/ou em organização, todas em torno do Cânone literário:
- 500 anos / Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende: Colóquio Internacional A lírica em questão. Do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende à atualidade, Ponte de Lima, 22/7/2016
- 400 anos / Congresso Internacional Cervantes & Shakespeare: 400 anos no diálogo das Artes, Lisboa, Novembro/2016
- Congresso Internacional Comemorativo dos 500 anos da Utopia. Tomás Moro e o Sonho de um Mundo Melhor, Novembro/2016.
Recentemente (embora com data de 2015), saiu um volume de mais de 500 páginas na sequência de vasto debate sobre a questão da Literatura e seu contexto cultural no espaço lusófono: Lusofonia e interculturalidade - Promessa e Travessia, coordenado por Moisés de Lemos Martins. Algumas das interrogações (Lusofonia e Literatura: haverá cânone(s) lusófono(s)?), das sugestões (Sugestões de critérios convergentes prévios para a formação e definição de um cânone lusófono), de hipóteses (Lusofonia e globalização. A possibilidade de refazer utopias), etc. da Lusofonia encarada como “reinvenção de comunidades e combate linguístico-cultural” ecoam no volume consagrando os avanços deste e de outros debates.
A problemática do Cânone Literário é, pois, nuclear na reflexão sobre a Literatura e sobre a Cultura de que é cristalização altamente elaborada, hipercodificada. Ao tema e à sua problematização dediquei já um volume (Luz & Sombras do Cânone Literário, 2014) e a Academia vai dedicando a sua atenção nos currículos e nos programas correspondentes. Os nossos ‘clássicos’, que relemos e evocamos (Italo Calvino), que modelizam a nossa literatura e dominam os nossos programas académicos (Harold Bloom), que constituem as nossas listas (Umberto Eco)…
Sintetizo em tópicos, alguns tópicos que tenho tratado e que mais tenho aprofundado (v. Luz & Sombras do Cânone Literário, 2014).
Convergências
É uma questão magna do estudo da Literatura, seja qual for a perspectiva.
Autores como Harold Bloom, mas também George Steiner, Italo Calvino, Umberto Eco, Daniela Marcheschi, etc., no plano internacional, ou Vítor Manuel de Aguiar e Silva, no nacional, são Mestres com que vamos realizando a nossa reflexão, com incontornável bibliografia.
Cada Literatura nacional elenca os seus e os das outras. Listas de instituições académicas e culturais prestigiadas, de autores respeitados (O Cânone Ocidental, 1994, de Harold Bloom) ou em revisão.
Há autores e obras que resistem mais longamente às oscilações do gosto e às mudanças de paradigma cultural e estético, outros/as que soçobram e muitos que, depois, são redescobertos. A definição do Cânone Literário está estreitamente dependente do auto/hetero-reconhecimento estético culturalmente moldado.
Divergências
No rigor da correspondência dos conceitos (cânone, nacional, europeu, ocidental, lusófono, autoral, etc.) à realidade que elas designam, assunto sobre que me ocupei noutro lugar com vasta exemplificação. E na sua existência de facto: se uns partem desse princípio, outros há que propõem que se definam/fixem esse(s) cânone(s).
Nas listas. Divergência de critérios de selecção e de constituição, como tive já ocasião de assinalar e de exemplificar no caso de exemplos mais representativos, quer entre listas, quer na sua constituição (p.ex., Bloom integra obras não literárias na lista, atendendo à sua influência cultural), quer entre os diferentes momentos da cartografia do mesmo autor.
Problemas da perspectiva da alteridade cultural
Apenas a título de exemplo, observando a proposta de Harold Bloom no que à Literatura Portuguesa se refere, anotei
- um imenso desequilíbrio compositivo no contraste entre épocas silenciadas e outras de grande concentração de autores: 2 do séc. XVI (Luís Vaz de Camões e António Ferreira), 1 do séc. XIX (Eça de Queirós) e 6 do séc. XX (Fernando Pessoa, Jorge de Sena, José Saramago, José Car-doso Pires, Sophia de Mello Breyner e Eugénio de Andrade), 5 dos quais da mesma geração;
- a falta de coincidência entre a proposta de Bloom e os protagonistas dessa reflexão (autores , teóricos, críticos, professores, investigadores): o auto-reconhecimento e o hetero-reconhecimento não se identificam, divergem bastante, aliás.
Sobre este problema da alteridade perspéctica com implicações na leitura no caso específico das literaturas de nacionalidades emergentes, falarei adiante.
Cânone Literário Lusófono
Poderia continuar a fazer um levantamento de aspectos que marcam a reflexão que informa a do Cânone Literário Lusófono, mas avancemos para este.
Na desejada e importante constituição de um Cânone Lusófono como instrumento de formação identitária da comunidade que por essa designação se sente abrangida, as dificuldades de realizar tal desiderato, muitas e diversificadas, têm sido motivo de sistemática reivindicação de que ele resulte de proposta dos próprios: de cada Literatura e comunidade, entendendo por esta o conjunto dos seus protagonistas (autores, teóricos, críticos, professores, investigadores), com destaque para os seus ‘artífices’. A proposta de Fernando Cristóvão mais longe: concretiza critérios para a constituição dos seus principais instrumentos de trabalho, as antologias, séries e histórias literárias conjuntas .
No entanto, os problemas e as dificuldades espreitam. Lembro apenas alguns.
Para o Cânone Literário Lusófono: alguns problemas
Em grande angular
Plural ou singular? Se a proposta é dos próprios, parece que o todo seria a soma das partes. Está por provar o reconhecimento de cada comunidade nesse puzzle totalizador, sendo certo que a falta de consenso dificultaria o singular…
O lugar e a função de certos autores que se situam exactamente nas fronteiras temporais e nacionais que hoje justificam falar-se de Lusofonia: marcaram de modo indelével a génese de uma literatura nacional grafada em língua portuguesa com uma inscrição epicentrada que os constitui como estranhezas n/dessas diferentes margens do rio da escrita.
A influência das relações entre os diferentes espaços lusófonos (a nível político, académico, etc.): p. ex., no Brasil, assinale-se o contraste entre a anunciada possibilidade de eliminação da obrigatoriedade do estudo da literatura portuguesa, retirando-a da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), e o reforço da presença das literaturas africanas nas escolas e universidades brasileiras
O progressivo apagamento da Literatura nos programas académicos de alguns dos espaços nacionais, reduzindo-lhe o espaço vital para as academias, onde a tendência de predomínio da modernidade e da contemporaneidade chega à quase rasura do clássico e do medieval. Esse movimento está a tender a reduzir o cânone nacional a um itinerário a tracejado, com figuras salientes sem companhia na paisagem do seu tempo. A corrosão do cânone, em hipótese académica, poderá chegar à sua rarefação e à perda de validade desse vestígio que nos programas académicos se consagra, impondo a necessidade de redefinição conceptual do cânone em função quase exclusivamente dos especialistas da Literatura…
Um exemplo
Um exemplo representativo tomado no quadro da Literatura luso-moçambicana: António Quadros (António Augusto de Melo Lucena e Quadros, n. 1933 - m. 1994), cuja tentação heteronímica o tornou conhecido como João Pedro Grabato Dias, Mutimati Barnabé João e Frey Ioannes Grabatus. Com extensa e diversificada obra literária e nas artes visuais (pintura, escultura, cerâmica, cartazes, ilustração, infodesenho, etc.) em Moçambique e em Portugal, fez parte do repertório de cantores como José Afonso e Amélia Muge.
Se os seus nomes e títulos literários já insinuam a oscilação entre esferas culturais e estéticas diferentes, a leitura das obras exibe uma espantosa tessitura que se deseja identitária para uma literatura moçambicana, trabalhando fios e desenhos que toma em diferentes origens: no cânone ocidental, no nacional português, popular e erudito, e na literatura e nas artes tradicionais populares moçambicanas, onde já seria cartografável escrita de autor, que também convoca.
A obra de António Quadros constitui-se como autêntico labirinto de paródia que manipula os fantasmas dos nossos museus imaginários, em especial nessa memória mais íntima e identitária. É o caso da Bíblia e d’Os Lusíadas, unindo sagrado e profano, ocidental e nacional. No IV Centenário Camoniano, simbolicamente, ofereceu-nos As Quybyrycas (1972), “poema éthyco em ovtavas que corre como sendo de Luiz Vaaz de Camões em Suspeitíssima Atribuiçon” em que se ocultava Frey Ioannes Garabatus, segundo intrincada ficção das origens que Jorge de Sena lhe inventa, invocando também um suposto manuscrito de um hipotético Luís Franco Correia, cumprindo promessa feita a D. Sebastião de continuar a saga portuguesa a partir d’Os Lusíadas: a batalha de Alcácer-Quibir é a matéria épica que “se encontrava oculta, como tudo em Os Lusíadas, uma chave do acontecimento que, alacremente, aceitamos prefaciar.” (Quadros, 1991:19). Na obra, o objetivo é já diverso do camoniano, o canto perdeu o tónus épico e o timbre aproxima-se do do Velho do Restelo quando o cantor interpela D. Sebastião, ao mesmo tempo que se aproxima da convocatória e enevoada Mensagem pessoana.
Com A Arca: Ode Didáctica na Primeira Pessoa – Tradução do sânskrito ptolomaico e versão contida (Dias, 1971) de João Pedro Grabato Dias, António Quadros impõe Noé e a Bíblia na sua casa de espelhos, partilhando o centro com as As Quybyrycas (1972).
Na obra do autor, só estes 2 livros seriam suficientes para demonstrar o profundo trabalho de arqueologia e de construção identitária no quadro de uma literatura emergente, a moçambicana, mas também de uma que no leito da anterior se renovou . Mas será também isso que o tornará progressivamente mais estranho para qualquer das comunidades nacionais lusófonas…
Ora, poderá haver um cânone nacional ou de comunidade de nações sem autores assim? E com eles?
Enfim…
… o levantamento destes e de outros problemas poderá promover profundas alterações nas pedagogias, nos modelos de bibliografia e de programas para que se constitua um cânone lusófono e, provavelmente, o plural terá de ser sempre usado…
… o Cânone Literário, na proposta de Bloom e na revisão que ela sofre para adaptação aos diferentes corpus literários (nacionais, transnacionais, autorais, etc.) é inquestionavelmente um instrumento muito útil, estratégico, para a vida dessa mesma Literatura (criação, leitura, investigação, ensino) e todos os contributos são valiosos, mas o seu panorama é fluido, apesar de alguns pontos luminosos mais permanentes… e a reflexão sobre ele terá de ser mais culturalmente informada, matéria de crónica futura…
O tempo se encarregará de responder a estas questões levantadas por hipóteses bem intencionadas…