“Um plessiossauro adormecido entre meus olhos Enquanto a música ardia num candeeiro E a paisagem tomava uma paixão Tristão e Isolda”
Luis Buñuel

Qualquer discurso sobre a investigação em artes está, antes de mais nada, balizado pela performance artística per se e a pesquisa que é feita neste campo. Este é o grande problema das entidades financiadoras: como estabelecer critérios, ou uma metodologia, que lhes permitam avaliar adequadamente a investigação feita em artes?

Apesar de todas as transformações pelas que passou o século XX, no século XXI continuamos a trabalhar com critérios positivistas, claramente inadequados, até mesmo para as ditas ciências exactas. É necessário começarmos a trabalhar com um paradigma diferente que permita um verdadeiro diálogo entre artes e ciência, sobretudo, porque as fronteiras entre estes dois campos há muito que se esboroaram, pelo menos desde que a tecnologia passou a fazer parte do discurso corrente dos textos artísticos. A tecnologia, nos dias que correm, não é apenas um suporte ou medium, mas faz parte da própria concepção do objecto artístico, pois vários artistas trabalham em parceria com as máquinas ou, indo mais longe, trabalham a partir da máquina.

Se os critérios científicos/positivistas nunca foram adequados para se compreender as artes, hoje dia não são sequer adequados para se compreender a própria ciência já que esta busca novos caminhos e, curiosamente, estes caminhos aproximam-na das humanidades. Ilya Prigogine, emérito químico, trabalhou com a Teoria da Complexidade na tentativa de encontrar respostas satisfatórias a uma série de questões que seus estudos sobre a termodinâmica impunham. Reconheceu, como vários cientistas também o fizeram, que os princípios científicos apenas, não seriam suficientes para dar conta de um universo em constante expansão onde as certezas cartesianas são substituídas por dúvidas, onde a organização é substituída pela compreensão, e aceitação, do caos.

O pensamento complexo é, acima de tudo, um pensamento dialógico que permite uma abordagem transdisciplinar entre áreas aparentemente tão diversas como a filosofia e a ciência. Digo aparentemente porque, se ao longo de muitos séculos houve um gradual e inexorável distanciamento entre estes dois campos do saber, na tarda-modernidade (final do século XIX e início do século XX), o diálogo necessário entre ciência, filosofia e artes voltou a ser reestabelecido. Não é à toa que podemos reconhecer a presença da Teoria da Relatividade nas obras dos pintores cubistas bem como encontrar referências a princípios semelhantes de criação em ciências e artes no discurso de teóricos como Charles Sanders Peirce.

Num livro publicado em 1984, Order out of Chaos, a filósofa belga Isabelle Stengers e o cientista Ilya Prigogine discutem a possibilidade de um novo diálogo entre homem e natureza pondo em causa as teses da ciência tradicional. Em 1979 Prigogine já publicara, também com Stengers, outra obra intitulada La Nouvelle Alliance: metamorphose de la science. Esta aliança entre a filósofa e o cientista não é um exemplar único de um diálogo que se estabelece como necessário a partir da segunda metade do século XX. Para Prigogine a ciência seria uma escuta poética da natureza; para outros cientistas, como o biólogo Henri Atlan, para se compreender verdadeiramente a ciência seria preciso pô-la a dialogar com textos da tradição judaico-cristã, antes expurgados completamente do contexto do discurso científico.

Atlan reconhece a importância da obra de Edgar Morin, Le Paradigme perdu: la nature humaine, pela capacidade que esta teve de lançar novas interrogações sobre problemas antigos e, sobretudo, por propor novas abordagens metodológicas para tentar responder a questões fundamentais como: quais são as implicações dos factos da experiência pelos quais constatamos, ou criamos, uma ordem na natureza? Em que medida investigações menos científicas, como a busca de identidade e pertença, realizadas no âmbito das humanidades, pode ser avaliada com critérios científicos? Como Prigogine, Atlan percebe que a complexidade do universo é demasiada para ser tratada apenas com teorias reducionistas que eliminam o caos e o ruído da construção final do seu discurso.

“As organizações vivas são fluidas e móveis”, diz Atlan. E reconhece ainda que “qualquer tentativa de fixá-las – no laboratório ou em nossa representação – faz com que caiam numa ou noutra de duas formas de morte[1]”. Between the ghost and the corpse, entre o fantasma e o cadáver: esta é a condição em que as estruturas vivas aparecem nos laboratórios. É impossível fixá-las e quando isto acontece elas morrem. Como conseguir então analisá-las? Para o biólogo é necessário, acima de tudo, aceitar a sua estrutura lábil, fluida, dinâmica e depois reconhecer que a única possibilidade de apreendê-las totalmente é através do discurso. Podemos representá-las, formular perguntas sobre elas, compreendê-las. Mas não podemos fixá-las sem que o resultado seja a produção de um cadáver.

Saindo do campo das ciências e entrando na área das humanidades, encontramos as reflexões de Jean François Lyotard que apontam para a falência dos grandes discursos fundadores da ciência e cultura ocidentais. Antes de tudo, Lyotard discute a própria ideia de “discurso fundacional” e do papel que o mesmo ocupa em nossa sociedade. No fundo, reflecte o sociólogo francês, a base da nossa civilização está assente numa narrativa. Ao longo dos séculos outras narrativas apareceram e foram ocupando determinados papéis. Uma transformou-se em História, a outra em Ciência e outra ainda em Religião. Uma decidiu ser Arte e a outra passou a ser chamada de Mito. Mas no fundo são todas igualmente narrativas, independentemente dos papéis que ocuparam e ocupam no palco onde encenamos a civilização ocidental. O que a contemporaneidade, finalmente, parece reconhecer é esta condição discursiva daquilo que foi aceite, por muito tempo, como lei e realidade.

As grandes narrativas, que tentarem fornecer respostas definitivas e apontar caminhos, caem por terra quando se percebe que, nenhuma delas, foi capaz de afastar o caos. Nenhuma delas impôs a ordem ou impôs-se à ordem desordenada dos organismos vivos em constante mutação. Filósofos, sociólogos e cientistas caminham numa mesma direcção: reconhecem que haverá sempre algo de inapreensível no mundo. Algo que escapa e que nem todas as metodologias encetadas para ordenar e classificar o real conseguiram obter respostas plenamente satisfatórias.

Em 1992, o realizador inglês Derek Jarman, faz um filme sobre Wittgenstein. O filme, que leva o nome do filósofo como título, não é apenas a biografia de um dos mais marcantes pensadores do século XX, mas uma tese verbo-visual sobre o biografado. EM Wittgenstein a complexidade do pensamento do filósofo austríaco é destrinçada não apenas no discurso textual mas, principalmente, no discurso imagético. Forma e conteúdo aparecem perfeitamente imbricados e, através da confluência dos discursos, conseguimos compreender algumas teses fundamentais de Wittgenstein. Uma das sete proposições do Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein diz: quando não conseguimos falar sobre algo, devemos ficar em silêncio. Porque o filósofo, nas sua incansável tentativa de ordenar o mundo, de compreendê-lo através da lógica, discute o lugar da linguagem na construção deste mundo. Afinal voltamos para o discurso, para a narrativa que nos sustenta e sobre a qual criamos a nossa história. São os jogos de linguagem que dão sentido aos discursos e que os legitimam.

Numa das cenas mais bonitas do filme vemos o menino-filósofo a sobrevoar, pendurado em balões coloridos, uma superfície de gelo, imaculada. E ouvimos uma voz em off a dizer que Wittgenstein imaginou um mundo perfeito, uma superfície plana, sem atrito, apreensível. Mas descobriu que, sem atrito, não se poderia caminhar naquele mundo, porque o atrito é que ajuda os nosso pés a fixarem-se no chão, de outro modo, escorregaríamos. O filósofo, muito mais tarde, percebeu o seu erro e descobriu que o mundo perfeito era inabitável.

Durante muito tempo a Ciência tentou encontrar o mundo perfeito, quantificável. Talvez agora tente, finalmente, compreendê-lo. A Filosofia também, utilizando outros caminhos, tentou apreender o mundo como um todo qualificável. Também ela descobriu que sem levar em consideração o atrito, os ruídos, os desvios, a sua visão do todo seria sempre incompleta. A Arte, por seu lado, ora tentou apreender o mundo, ora tentou aprender sobre o mundo. No início do Século XX os discursos sobre ciências, filosofia e artes fundem-se nos manifestos de alguns dos movimentos das vanguardas artísticas. Tant va la croyance à la vie, à ce que la vie a de plus précaire, la vie réelle s’entend, qu’á la fin cette croyance se perd – assim começa o I Manifesto do Surrealismo escrito, em 1924, por André Breton. A crença na vida se perdeu porque, talvez, a abordagem utilizada nesta aproximação não fosse adequada ou já estivesse em desuso.

Volto ao princípio: como é possível avaliar a cientificidade de um projecto no campo das artes se o próprio conceito de cientificidade foi sendo dirimido ao longo dos últimos séculos? Talvez um caminho possível seja voltar, realmente, ao princípio: à procura de um conhecimento holístico onde ciência, filosofia e artes partilham o mesmo plano, como discursos fundacionais de igual valor. Não sou ingênua ao ponto de propor que sejam esquecidos séculos de avanços e recuos, de descobertas e deslumbramentos, mas nada impede que se reconheça a importância do diálogo, possível e necessário, entre ciência e arte; entre o discurso e a vida; entre a ordem e o caos. E dialogar é um exercício perigoso, que implica desde a aceitação total do discurso do outro (o que oculta perversamente as diferenças) ao risco de provocar uma série de mal-entendidos.

Arjun Appadurai ao reflectir sobre os riscos dos diálogos interculturais diz que “todo o diálogo é uma forma de negociação e a negociação não pode basear-se numa compreensão mútua completa ou num consenso total que atravesse qualquer espécie de fronteira ou diferenciação[2]”. No diálogo entre culturas deve-se trabalhar com as diferenças, aprender com elas, tentar perceber o outro a partir daquilo que o constitue e que o torna distinto. No diálogo entre as diversas áreas do saber também não podemos negar as diferenças, nem deixar de reconhecer as limitações de uma e da outra área. É preciso sim promover a intereção, buscar a complementaridade, negociar os resultados.

A crença neopositivista na unidade da ciência há muito que perdeu o seu lugar. Não faz sentido, portanto, continuarmos a aprisionar a investigação em artes numa gramática científica. Nem toda investigação produz um output científico, mas toda e qualquer investigação deve produzir um output de conhecimento. Qualquer tipo de conhecimento. Desde que a base desta investigação esteja bem assente no rigor, que não é premissa apenas das ciências, e na genuína necessidade de construir um dialógo profícuo e constante que não exclui as diferenças, os erros, os ruídos e que, acima de tudo, não tenta, inutilmente, organizar o caos. Mas procura, sabiamente, negociar com ele.

Notas

[1] Henri Atlan, Entre o Cristal e a Fumaça, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992, p. 9.
[2] Arjun Appadurai, “Diálogo, Risco e Convivialidade” in Arjun Appadurai et alii, Podemos Viver sem o Outro? As Possibilidades e os Limites da Interculturalidade, Lisboa, Tinta-da-china, 2009.

Referências

APPADURAI, Arjun. “Diálogo, Risco e Convivialidade” in Appadurai, Arjun et alii. Podemos Viver sem o Outro? As Possibilidades e os Limites da Interculturalidade. Lisboa, Tinta-da-china, 2009.
ATLAN, Henri. Entre o Cristal e a Fumaça. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.
LYOTARD, Jean-François. La Condition Posmoderne. Paris, Les Éditions de Minuit, 1979.
PRIGOGINE, Ilya e STENGERS, Isabelle. Order out of Chaos: man’s new dialogue with nature. Londres, Flamingo, 1985.
________ . A Nova Aliança. Lisboa, Gradiva, 1987.