Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
- Mário Quintana -

Tornou-se um lugar-comum falar sobre cinema e cidade. E mais ainda falar de ambos como representantes da modernidade. Nós preferimos falar de cinemas e de modernidades, assim no plural. Porque ao limitarmos o cinema a uma determinada experiência e a modernidade a uma ideia unitária, estamos a reduzi-los. A modernidade fica, deste modo, associada invariavelmente ao conceito de progresso, a uma ideia teleológica de benesses adquiridas e a adquirir pela cultura através do avanço científico e tecnológico e da superação do passado. Não se trata apenas da superação, mas da consciência da superação – da certeza de que a humanidade caminhava inexoravelmente em direção ao futuro e, portanto, a consciência aguda do presente. Acreditamos, no entanto, que a modernidade teve várias facetas. E que não podia, em nenhuma delas, ignorar o passado, mas teve de, obrigatoriamente, dialogar com ele.

Thomas Bender, ao falar de NY, a cidade interminável, diz que a modernidade é um diálogo com o passado. E o que o passado deve estar presente. Este modelo de rotura completa com o passado é apenas uma das faces da modernidade, à qual estamos mais habituados. Bem como estamos habituados, também, a associar a modernidade a certas facetas da arte, principalmente quando pensamos na arquitetura e, claro, nas cidades ou melhor, nas metrópoles: símbolo absoluto do fim do século XIX conforme Baudelaire e Benjamin, conforme ainda tantos autores, mais ou menos referenciados. Kracauer, bem menos citado que Benjamin, de quem foi amigo e com quem trocou correspondência, tem uma leitura muito particular das metrópoles do seu tempo, principalmente, de Berlim e de Paris. A sua leitura de Paris, num certo sentido, está ligada àquela que foi consagrada por Benjamin. Walter Benjamin enxerga nas passagens de Paris, dentre muitas coisas, uma passagem para a modernidade, essa nova temporalidade tão bem definida por Baudelaire; Kracauer vê Paris como uma cidade ainda passível de comunicar-se com o passado, de ser múltipla e labiríntica ao contrário de Berlim: uma cidade cujo passado era arrancado e destruído, onde avenidas inteiras transformavam-se num símbolo da funcionalidade moderna, ou mesmo do “americanismo” que se instalava na República de Weimar.

“O ornamental reprimido”, é assim que Kracauer define os novos edifícios de Berlim, ao contrário de Paris que possuía a embriaguez das ruas, a memória do passado no presente, num mundo onde a ratio era o imperativo, permitindo-se ser labiríntica e descaradamente ornamental. No entanto, o ornamento reprimido em Berlim, como tudo o que se reprime, acabou por vir à tona: através dos espetáculos massivos, que redundaram nos espetáculos promovidos pelo nazismo.

Trazemos estas duas visões dessas duas cidades contemporâneas e fundamentais para percebermos a modernidade, ou as modernidades, para que possamos perceber que de uma forma ou de outra, o espaço urbano, labiríntico ou racional, marca um tempo que é marcado pela consciência de si mesmo: o tempo da sua finitude ou efemeridade. Não é à toa que os conceitos de shock (Benjamin) e de stoss (Heidegger) são utilizados com frequência para falar da reação das pessoas a esta nova experiência de e no tempo. A esta experiência de choque, ontologicamente diferente, associa-se o cinema como a experiência que torna palpável a sensação de instabilidade experienciada por aqueles que viveram o início da modernidade e o princípio do cinema.

O stoss, mais que um choque, é o desespero humano de saber-se finito, de saber que, como o tempo e as coisas do tempo, não se controla o fio da meada. Ao contrário do fort-da freudiano, onde a criança simula uma ausência mas sabe que tem o controlo da presença, na modernidade, perde-se a certeza do controlo e as ausências não são simulacros, mas certezas. O cinema aparece como o carretel e a linha do jogo analisado por Freud. Nele podemos simular ausências e controlar o retorno da presença. Mas o cinema é, ao mesmo tempo, composto de sombras, sendo adaptado, conforme Kracauer, para captar “um mundo sem substância e em processo de desintegração”.

O carácter fragmentário do cinema, bem como a evocação que ele faz do real, tem sido usado como metáfora para se falar da modernidade e do perfeito encaixe entre o cinema e o tempo que o criou. Ele nasceria quase como uma resposta a um apelo do tempo. Do mesmo modo, a visão pessimista de Kracauer é compartilhada por muitos intelectuais da altura: a associação da modernidade ao modelo fordista-taylorista; ao capitalismo que invade todas as instâncias do mundo, sobretudo a da cultura e da arte; a configuração dos novos espaços urbanos, metrópoles – cidades-mães de uma nova civilização, fez com que Lukács, por exemplo, falasse de “desabrigo transcendental”.

A modernidade lança o indivíduo num “desabrigo transcendental”. E a cidade torna-se o lugar por excelência destes desabrigados. É ela que, desenraizada e desenraizante, fragmentada e instável, lança o indivíduo num estado de choque permanente, como preconizou Benjamin, dando a cada um dos seus inúmeros habitantes a consciência do efémero e da incapacidade de controlo total sobre a sua própria história, conforme Heidegger. A cidade e o cinema confundem-se como discursos de um tempo que corre, inexorável, em direção a um fim que, num ritmo frenético, nunca para promovendo incessantes espetáculos que ocupam este tempo reinventado pela lógica do capitalismo, onde ócio é convertido em lazer e lazer em período predeterminado de um gozo fugaz.

O cinema, como a cidade, é composto de fragmentos, de pedaços de realidade ou melhor ainda, de recortes da realidade, que mudam conforme a luz ou a angulação. No início do séc. XX, teóricos como Munsterberg e Jean Epstein chegam à conclusão de que o cinema se “realiza” na mente do espectador. Um e outro trabalharam separados por uma distância física e temporal, e não há pistas de que Epstein conhecesse o trabalho pioneiro de Munsterberg. A única certeza que podemos ter é a de que ambos perceberam que o filme só existe porque o espectador consegue dar sentido a uma série de fotogramas que se arrastam no tempo. O espectador consegue unificar o tempo e o espaço e percebê-lo como um continuum.

Sabemos que a modernidade lança um novo conceito de espaço urbano. E promove um novo modelo de visão: subjetiva, corpórea, direcionada. Para sobreviver à fragmentação (e ao choque benjaminiano), a perceção organiza a nossa experiência do visível – vemos um fluido contínuo de sentido naquilo que é composto de pedaços esparsos, de locais diferentes e de diferentes temporalidades. Como na Paris do séc. XIX, o diálogo entre o passado e o presente é uma constante em cada rua e vive-se, em simultâneo, esta temporalidade dialógica e dinâmica. A Paris de Kracauer não é a mesma de Benjamin. Nem será a mesma para cada um que lá vive ou que por lá passou.

Thomas Bender diz que NY é uma cidade inacabada. Diz também que este é o seu carácter primordial, aquele que melhor a define. Podemos aplicar este conceito de cidade inacabada para todas as grandes cidades, que se expandem infinitamente, ou que se encolhem e recuam, conforme aqueles que a habitam, conforme o espaço que têm de percorrer, conforme o tempo de gozo controlado - o chamado lazer - quando podem viver a cidade de uma maneira mais expansiva e diversa da quotidiana. Neste ponto cidade e cinema divergem – por mais aberto que seja, o texto fílmico tem um fim - pelo menos um fim diegético. O cinema tem recursos narrativos/imagéticos que obrigam o nosso olhar a fixar-se em determinado pormenor, ou numa cena ou numa paisagem. A cidade, por mais racional que seja, é mais labiríntica. É como um puzzle que montamos dia após dia.

Para montar o puzzle, que é o espaço urbano, caminhamos orientados por peças fundamentais que destacamos de todo o resto. E todo o resto fica à margem. Como no cinema, o que não nos interessa está fora de campo. Desta maneira a minha cidade é só minha, não posso compartilhá-la, porque ela existe apenas em mim. A outra cidade, ou a cidade “real”, é sempre um espaço outro, onde caminho mas nem sempre me revejo. A psicanalista Maria Rita Kehl diz que a cidade é o berço do homem comum – anónimo, parte da multidão, local ideal para o esquecimento quotidiano e necessário diante da fugacidade da experiência num espaço em constante mutação.

A cidade real é o espaço da alteridade, onde não reconhecemos aqueles com quem cruzamos todos os dias. São invisíveis (como nós). Assim, o espaço urbano converte-se no local do reconhecimento da fratura do indivíduo, local de vivências diversas e da experiência constante do esquecimento: do outro, de nós, daquilo que nos rodeia. Aprendemos a ver/viver a cidade como aprendemos a ver os filmes. A imagem, no cinema e fora dele, é um texto que precisa ser descodificado. Em parte da Europa e nos Estados Unidos torna-se mais fácil este processo de descodificação porque foram eles quem inventaram as regras do jogo, do cinema e da cidade moderna. De que maneira os definitivamente outros, como os africanos, veem e vivem estes dois textos fundantes da civilização ocidental contemporânea?

Apontamentos sobre um cinema outro

A arte, conforme Lyotard, não diz o indizível, antes, diz que não pode dizê-lo. Vamos então percorrer, através de alguns filmes do cinema moçambicano, o modo como a cidade e o cinema, convertidos em discurso, são vistos/vivenciados. O cinema, que não pode dizer o indizível, mostra. Revela em sua própria montagem, em sua essência de fragmentos que são recompostos, uma dor que não pode ser sublimada, mas que habita os habitantes, muitas vezes invisíveis destas cidades.

Jean-Claude Carrière, em seu livro Linguagem secreta do cinema, conta que o cinema foi levado para o continente africano pelos colonizadores europeus como mais uma arma na sua bagagem já tão carregada. Não é de estranhar este facto se pensarmos que, também a igreja, nos primórdios do cinema, utilizou filmes como parte da homilia. A imagem serviu vezes sem conta a fins pedagógicos – fossem os ensinamentos uma forma de ampliar o conhecimento do outro ou uma forma de dominá-lo, pura e simplesmente. E a imagem cinematográfica não fugiu à regra. Prestou-se, em diversas ocasiões, a ser instrumento de cognição e de dominação. Pela sua ligação ao real, o cinema serviu para criar e reforçar ideologias; para impor modelos e sugerir padrões de comportamento.

A cidade ocidental e o cinema chegaram quase que em simultâneo em Moçambique. Lourenço Marques é concebida como uma metrópole no sentido etimológico do termo: cidade mãe de uma ideia de ocidente, modelo de uma civilização que se deveria espraiar por todo o país e quiçá, pelo continente vastíssimo. É interessante reter que um dos primeiros institutos criados por Samora Machel, logo a seguir à independência, foi o INC – Instituto Nacional do Cinema. A função principal deste instituto era a de realizar atualidades cinematográficas, pequenos documentários – Kuxakanema – que eram distribuídos por todo o país. O que nos dá a dimensão da importância pedagógica e propagandística que este meio teve durante a primeira fase da independência de Moçambique. E dá-nos também a dimensão documental que vai vincar fortemente o cinema deste país.

Não havia televisão e o cinema assume o papel de criar a imagem do novo governo e do novo país. Para além das atualidades, vários filmes, principalmente curtas e médias metragens, foram sendo produzidos. Em 1991, um incêndio destruiu quase todo o acervo de filmes produzidos pós-independência, restando apenas uma parte que está a ser catalogada e restaurada com a ajuda da Cinemateca Portuguesa. A nós interessa mais o cinema de ficção, mesmo que a produção deste seja bem mais escassa, porque acreditamos, como Barthes, que é na pose que nos revelamos. É, através da ficção que os realizadores conseguem mostrar de que maneira se apropriaram do cinema e da cidade escrevendo com suas próprias palavras estes dois textos que foram ali implantados.

Ousmane Sembène, realizador senegalês, considerado o “pai do cinema africano”, disse numa entrevista que o cinema, para ele, tinha uma finalidade muito específica: educar as pessoas. Os seus filmes eram conscientemente pedagógicos e o cinema era apenas um veículo para o seu discurso. A imagem é um meio poderoso em lugares onde a língua é múltipla e o espaço é dominado pela heteroglossia - a fala é socialmente construída e nem todos dominam a língua oficial do seu próprio país. De uma maneira geral é este também o panorama do cinema moçambicano: filmes de ficção produzidos por entidades autónomas, normalmente ONGs, que cumprem uma função social importante e apresentam, através de um discurso apreensível, questões fulcrais para o país como o desenraizamento das pessoas, a pobreza, e o HIV.

A cidade, nestes filmes, ora é personagem ora é pano de fundo. E a sua ausência, como o carretel do jogo freudiano, é apenas uma presença ocultada. Ela aparece como um caminho, e são os caminhos-de-ferro que ligam as personagens ao espaço urbano no filme de Licínio de Azevedo, O Grande Bazar. São as ruas da cidade de Maputo que dividem a cidade em várias, como no filme Jardim d’Outro Homem de Sol de Carvalho. No filme As Pitas, também de Licínio, o universo juvenil é apresentado, tendo como pano de fundo a cidade, Tete. As jovens falam de amores e desamores, veem TV e vestem-se como raparigas ocidentais. É o espaço envolvente e a recorrência a um tabu ocidental, a feitiçaria, que dão ao filme uma cor e tom locais.

A cidade, ou as cidades, nestes filmes, aparece fragmentada, desmontada, re-arranjada. É a mesma cidade mas são múltiplos os espaços e mais diversos ainda os usos de cada edifício, de cada recanto. A cidade moçambicana é a mesma, mas é outra. A sua fragmentação não obedece ao raccord do cinema ocidental, a sua lógica interna é feita de apropriações, devidas ou indevidas, do espaço público e das representações do espaço privado neste. A análise das sequências das imagens da cidade não se constrói apenas da materialidade física dos espaços, mas sim a partir do que se faz e do que se passa na cidade, a partir dos seus habitantes. Neste sentido, a cidade transparece mais nos corpos que a povoam do que na organização dos cenários que propõe.

Uma cidade é um espaço dialógico e este diálogo é capturado pela câmara dos realizadores de uma ficção muito próxima do docu-drama, matriz de um cinema ainda em construção. De um cinema inacabado, como as cidades que retrata. Mas, como disse Bender ao falar de NY, o inacabamento é uma característica, não uma falha. É uma escolha, consciente ou inconsciente, de um espaço que não se quer confinar, construído de betão, de vidro. Sobretudo construído de pessoas. É esta massa humana que faz da cidade aquela cidade. E é sobre esta cidade de pessoas que fala um cinema cuja voz ainda se ouve muito pouco nestas cidades do lado de cá.

Referências bibliográficas

Bienal de São Paulo (27. 2006). 27ª Bienal de São Paulo: seminários/curadoria geral Lisette Lagnado. Rio de Janeiro, Cobogó, 2008.
Bender, Thomas. The Unfinished City – New York and the metropolitan idea. New York, The New Press, 2001.
Benjamin, Walter. Obras escolhidas (3 vol.). São Paulo, Brasiliense, 1985.
Carrière, Jean-Claude. Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2007.
Charney, Leo e Schwartz, Vanessa (org.). O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo, Cosac e Naify, 2001.
Kracauer, Siegfried. Offenbach and the Paris of his time. London, Constable, 1937.
Kracauer, Siegfried . The Mass Ornament - Weimar Essays. Cambridge, Harvard University Press, 1995.

Filmografia

As Pitas
País: Moçambique. Ano: 1998. Género: Ficção. Duração: 52 mn. Realizador: Licínio Azevedo.

O Grande Bazar País: Moçambique. Ano: 2005. Género: Drama. Duração: 56 mn. Realizador: Licínio Azevedo.

O Jardim do Outro homem
País: Moçambique. Ano: 2006. Género: Drama. Duração: 100 mn. Realizador: Sol de Carvalho.

Pregos na Cabeça
País: Moçambique. Ano: 2004. Género: Drama. Duração: 32 mn. Realizador: Sol de Carvalho.