Em pesquisa qualitativa, cujo tema foi o estudo das identidades masculina e feminina sob o referencial da Psicologia Analítica, investigou-se o psiquismo de homens e mulheres a fim de obter uma visão mais aprofundada do que se tem como essencial (arquetípico) para o masculino e o feminino no estrato cultural de Campinas (Brasil). A técnica utilizada foi a da imaginação guiada. Trabalhou-se com 24 sujeitos de ambos os sexos, mas para os fins deste artigo será apresentado apenas um caso representativo. Dentre todos, o caso Heródoto (nome fictício) é o que melhor ilustra a questão do conflito entre o sagrado e o profano nas relações entre os sexos, e cuja resolução apresentada na cena do encontro parece ter sido terapêutica.

Figura feminina

Heródoto afirma que o Ser feminino para si “é da natureza”, tratando-se de um bosque com várias árvores compridas, altas. O local é calmo e silencioso, com muitas árvores próximas umas das outras. Heródoto ressalta que as árvores são compridas, longas (enquanto o ipê se destacava por suas flores, as árvores se impõem por sua altura). Neste caso aplica-se o mesmo o caráter da verticalidade, isto é, um movimento de ascensão e de subida em direção ao céu, referido anteriormente à simbologia da árvore. Vale acrescentar que segundo Chevalier & Gheerbrant (1996) sexualmente, o simbolismo da árvore é ambivalente (a própria altura das árvores ressaltada pelo sujeito sugere mais um atributo masculino que feminino). Algumas vezes a árvore é considerada como macho e, outras vezes, como fêmea. Ou então, pode ocorrer que as duas polaridades se adicionem, o que levou Jung a uma interpretação do símbolo em termos de androginia, ou melhor, de hermafroditismo. Essa ambivalência do simbolismo da árvore, a um só tempo falo e matriz, manifesta-se ainda com maior clareza na “árvore dupla,” que simboliza o processo de individuação no decurso do qual os contrários se unem.

O sujeito especifica que entre tais árvores a luminosidade já não é tão forte como o era em se tratando do ipê (naquele caso imperava a luminosidade solar masculina), e acrescenta sentir “um cheiro forte de natureza,” cheiro de plantas e flores (a penumbra e os odores, supostamente atributos da feminilidade, podendo ser estes últimos relacionados com o odor característico do órgão genital feminino). Heródoto ressalta que há uma figura que se destaca neste cenário: uma fonte, na verdade, um pequeno chafariz, no centro do bosque, cercado por flores. Estas flores se destacam por uma tonalidade muito viva de cores: alaranjado, amarelo, vermelho. “São muito coloridas! Chama a atenção!” diz ele. O escoamento da água se dá através de uma pequena canaleta, sem muita pressão, e se esparrama pelo gramado, sugerindo a ideia de abundância, fertilidade e tendência à expansão.

De imediato, a fonte (supostamente de formato circular) cercada por flores coloridas no centro do bosque sugere a imagem de uma mandala, uma representação arquetípica. JUNG (1991) afirma que a mandala consiste em uma forma básica, relativamente simples e cujo significado pode ser considerado como “central”. Símbolo do si-mesmo (“self”), a mandala expressa a totalidade da psique em todos os seus aspectos, incluindo-se a relação entre o homem e o conjunto da natureza.

Uma outra interpretação que pode ser feita seria considerar-se a pequena canaleta pela qual se escoa a água como um correlato da vagina, enquanto a fonte pode ser associada ao próprio útero, sendo o conjunto uma imagem dos órgãos reprodutores femininos. Esta ideia é corroborada pelas considerações abaixo, que têm na fonte um símbolo da maternidade.

Chevalier & Gheerbrant (1996) afirmam que o simbolismo da fonte de água pura é expresso principalmente pelo manancial que brota no meio de um jardim, ao pé da “Árvore da Vida,” no centro do Paraíso terrestre, e que depois se divide em quatro rios, suas águas correndo para as quatro direções do espaço. Essa é segundo as diversas terminologias a fonte da vida ou da imortalidade, ou da juventude, ou ainda, a fonte do ensinamento. Uma outra leitura é que em virtude de suas águas sempre cambiantes, a fonte simboliza, não a imortalidade, mas sim um perpétuo rejuvenescimento.

A sacralização das fontes é universal. Através delas se dá a primeira manifestação, no plano das realidades humanas, da matéria cósmica fundamental, sem a qual não seria possível assegurar a fecundação e o crescimento das espécies. A água viva que delas corre é, como a chuva, o sangue divino, o sêmen do céu. É um símbolo da maternidade. Por isso, são freqüentemente protegidas por tabus.

Na Bíblia, os poços no deserto, as fontes que se oferecem aos nômades são outros tantos lugares de alegria e encantamento. Junto das fontes e dos poços operam-se os encontros essenciais. Perto deles nasce o amor e os casamentos principiam. A marcha dos hebreus e a caminhada de todo homem na sua peregrinação terrena estão intimamente ligadas ao contato exterior ou interior com a água. Esta se torna, então, um centro de paz e de luz, um oásis.

Quanto às cores das flores que circundam a fonte - o alaranjado, o vermelho e o amarelo - o alaranjado a meio caminho entre o amarelo e o vermelho, é a mais actínica das cores. Entre o ouro celeste e o vermelho ctônico, esta cor simboliza antes de tudo o ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido. A pedra de jacinto, de cor alaranjada, era considerada como um símbolo de fidelidade. Passada no fogo, esta pedra se descolore, o que explica que se tenha visto nela a expressão da fé constante que triunfa sobre o ardor das paixões e as apaga. Mas o equilíbrio entre o espírito e a libido é algo tão difícil que o alaranjado se torna também a cor simbólica da infidelidade e da luxúria. Esse equilíbrio, segundo tradições que remontam à Terra-Mãe, era buscado na orgia ritual, que devia conduzir à revelação e à sublimação iniciatórias (Chevalier & Gheerbrant, 1996).

O sujeito acrescenta que o bosque é cercado por um muro alto de tijolos. Segundo Chevalier & Gheerbrant (1996) a muralha ou muro é tradicionalmente a cinta protetora que encerra um mundo e evita que nele penetrem influências nefastas de origem inferior. A significação mais fundamental do muro sugere a ideia de separação: “Separação entre Deus e a criatura; entre o soberano e o povo; separação entre os outros e eu” (p. 626). O muro é a comunicação cortada, com a sua dupla incidência psicológica: segurança, sufocação; defesa, mas prisão. Ele se aproxima ainda do simbolismo do elemento feminino e passivo da matriz. A altura da muralha (no caso de Heródoto o muro é alto) significa uma elevação acima do nível comum, e está ligada ao simbolismo do vertical mais do que ao horizontal.

Sentado, recostado na parte interna do muro, o sujeito sente que o mesmo é um pouco frio e úmido. Mas ele continua respirando “aquele ar...” (o ar ambiente) e observando as árvores. Heródoto reitera que o lugar é silencioso e que ele está só, ali (assim como no quadro do ipê). Não há movimento aparente de outras pessoas. Somente ele juntamente com aquelas árvores imensas, observa. O silêncio é considerado por Chevalier & Gheerbrant (1996) um prelúdio de abertura à revelação; ele abre uma passagem, e dá às coisas grandeza e majestade; segundo as regras monásticas “é uma grande cerimônia” (p. 834), ressaltam os autores.

Observe-se que pelas condições peculiares do local, referidas de forma iterativa pelo sujeito: um lugar calmo, silencioso, com árvores imensas, protegido e delimitado por um muro, com uma atmosfera que suscita o sacrossanto (supostamente da esfera do numinoso), ele parece estar tratando de um “temenos.” FRANZ (1990) relata que na Grécia, um “temenos” era simplesmente um pequeno local sagrado num bosque, ou numa montanha no qual a pessoa não pode entrar sem que tome certas precauções, um local onde as pessoas não podem ser mortas nem capturadas (elas se tornam invioláveis). Como um lugar do culto divino, ele significa o território que pertence a Deus. Tal local tem uma função dupla: de proteção e de concentração para o que está dentro e exclusão do que está fora. A palavra “temenos” vem de “temno:” cortar (pensando no aspecto sem significado e profano da vida). O fato de não haver ninguém presente no bosque a não ser o próprio sujeito, sugere que se trata de um “temenos” particular, interior, uma condição de sua própria alma.

Heródoto explica que a fonte fica mais afastada do local em que se encontra. Do ponto em que está pode visualizar um portão: “Um grande portão... uma grande cerca,” diz ele. De um lado ele vê o muro, de outro lado são as grades do portão. Olhando para a frente, estão os troncos das árvores, por onde ele pode ver uma cerca de ferro; é como se o portão fosse uma grande cerca, uma grade de ferro que dá acesso e torna visíveis aqueles que passam do lado de fora. A permeabilidade do portão estabelece e torna possível um certo tipo de comunicação (ou de observação) com o mundo lá fora. Heródoto pode ver que passam pessoas rapidamente pela calçada, todavia elas não observam o interior do bosque.

Segundo Chevalier & Gheerbrant (1996) a porta simboliza o local de passagem entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas. A porta se abre sobre um mistério, mas ela tem também um valor dinâmico, psicológico, pois não somente indica uma passagem, mas convida a atravessá-la. Esta passagem é, na maioria das vezes, do domínio profano ao domínio sagrado (o bosque seria um território de domínio sagrado). Nas tradições judaico-cristãs, a importância da porta é imensa, porquanto é ela que dá acesso à revelação; sobre ela veem se refletir as harmonias do universo. A porta evoca também uma ideia de transcendência, acessível ou proibida, dependendo se estiver aberta ou fechada, se tiver sido transposta ou simplesmente vista.

O simbolismo do ferro - o metal de que é composto o portão - é ambivalente: o ferro protege contra as más influências e é também o instrumento destas mesmas influências; é o agente do princípio ativo que modifica a substância inerte, embora seja igualmente o instrumento satânico da guerra e da morte. A proibição dos metais nos altares hebreus visa, acima de tudo o ferro, pois como indica a doutrina dos quatro “Yuga” (as idades de ouro, de prata, de bronze, de ferro), existe uma hierarquia descendente dos símbolos metálicos em relação com a solidificação, o endurecimento progressivo das idades do mundo (Chevalier & Gheerbrant, 1996).

Enquanto símbolos de energia, os metais foram associados à libido no simbolismo de Jung. Seu caráter subterrâneo os aparenta com os desejos sexuais. Sublimar estes últimos é operar uma transformação de vil metal em ouro puro, liberando-se tanto das servidões carnais como dos influxos planetários e metálicos nocivos. A via da individualização é comparável à das transmutações. A sublimação ou a espiritualização, como a Grande Obra dos alquimistas, passa pelo fogo, pela destruição, pela restauração a um nível superior. De acordo com uma outra tendência, trata-se não apenas de se liberar dos influxos metálicos e planetários, mas de os integrar em uma existência totalmente equilibrada.

Por sua vez, o tijolo, o elemento de que é feito o muro, simboliza a passagem da humanidade à vida sedentária e a origem da urbanização: casa, cidade, templo. É o símbolo do homem preso à sua casa, sua terra e sua família, procurando organizar-se em aldeias ou cidades, com seus recintos de culto. “O tijolo traz ao homem a segurança da moradia, da cultura, da sociedade, da proteção divina; embora lhe traga também o limite, pois o tijolo significa a regra, a medida, a uniformidade.” (Chevalier & Gheerbrant, 1996, p. 885).

Heródoto continua sentado recostado ao muro, observando as árvores, e reitera que se sente só naquele ambiente com pouca claridade, com pouca luz do sol. Em seguida ele se deita na grama e olha para cima. Vê as folhas das árvores se balançarem acima dele, bem devagar. Poder-se-ia dizer que o caminho para o processo de individuação, que é intermediado pela anima - a natureza, as árvores com sua pouca luminosidade - é lento, e se processa passo a passo, mas sobretudo, ele parece ser feito em solidão, pois o sujeito está sempre sozinho. Subitamente, ele observa um pequeno caminho de formigas listradinhas. Elas caminham numa única direção; seguem a direção da fonte (supostamente o caminho que o levaria à resposta para a resolução de seu conflito). O caminho por onde elas passam é bem feito, e assemelha-se a terra batida (um caminho que já está aberto). “É limpo!”, diz ele. As formigas, contudo, não notam a presença de Heródoto.

Já se tornou conhecimento de senso comum que a formiga é um símbolo de atividade industriosa, de vida organizada em sociedade, de previdência (por isso, o caminho bem feito, de terra batida, limpo). Chevalier & Gheerbrant (1996) acrescentam que a formiga tem importante papel na organização do mundo segundo o pensamento cosmogônico dos “dogons” e bambaras do Mali. Nas origens, quando da primeira hierogamia céu-terra, o sexo da terra era um formigueiro. Na última etapa da criação do mundo, esse formigueiro tornou-se uma boca, de que saíram o verbo e seu suporte material, a técnica da tecelagem que as formigas transmitiram aos homens. Os ritos de fecundidade permaneceram associados à formiga: as mulheres estéreis vão sentar-se em cima de um formigueiro para pedir ao deus supremo, Amma, que as faça fecundas. A associação formigueiro-sexo feminino acarreta uma série de aplicações práticas: os bambaras acreditam que as formigas estejam em ligação com a água invisível do subsolo. Também, ao se perfurar um poço, não se poderia escolher melhor lugar que o de um formigueiro.

Em seguida, Heródoto se levanta e se dirige ao portão. Ele está fechado, o que significa que não há livre trânsito entre os dois mundos (o sagrado e o profano); a circulação está interceptada pelo caminho oficial, o que obriga o sujeito a buscar uma saída alternativa para transpor para o outro lado. Heródoto, então, escala o portão subindo por suas grades laterais, vai descendo até alcançar a calçada, e segue a rua que surge defronte ao portão (nasce em frente a ele e segue perpendicularmente). O sujeito vai embora, de volta ao mundo profano, mas olha para trás, despedindo-se com o olhar. Seu sentimento é o de que “tudo aquilo vai com ele,” ou seja, levará consigo as impressões resultantes de sua incursão no mundo do sagrado. Escalar o portão de ferro por suas grades laterais significa buscar uma solução alternativa para sair do território sagrado o que é feito passando pela libido que precisa ser reconhecida. A experiência do sagrado interiorizada por um lado, e por outro, a libido aceita, resulta em uma genuína experiência de totalidade, uma efetiva solução para o conflito entre o sagrado e o profano. Lembrando que o significado de “totalidade” para JUNG (1985) é o de cura ou redenção.

Observa-se que neste quadro o feminino está diluído e representado em vários elementos: as árvores compridas (apesar do sujeito afirmar de que se trata de um elemento feminino, o comprimento avantajado das árvores sugere, todavia, atributos de masculinidade, pressupondo em última instância a androginia e o hermafroditismo anteriormente referidos), a fonte, a penumbra do ambiente, a umidade e o frio do muro.

Todavia, as formigas, como verdadeiros psicopompos - figuras tidas como ‘guias da alma’, e mediadoras no processo de transição do ego ao inconsciente - indicam sabiamente o caminho da fonte para atingir a meta da feminilidade transmutada. Em outras palavras, simbolicamente indicam de forma clara e bem definida os passos do processo de individuação, o qual por sua vez conduzirá ao “self”, perfazendo em última instância o eixo ego-“self”. Isto parece resolver o conflito com as pulsões sexuais despertadas por este mesmo feminino, mas que tem sua representação mais contundente nas fortes cores das paixões (o vermelho) e que também está presente nas energias telúricas do ferro. O profano e o sagrado, se não for possível fundir-se e chegar a uma nova síntese, poderiam encontrar uma coexistência harmoniosa, o que está expresso pela presença pacificadora do alaranjado, e pela saída alternativa que o sujeito encontrou para sair do bosque.

Referências

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