Aprendi muitas coisas abrindo o Tarot para a mulherada neste ano que passou.
No ano passado, quando fiz 50 anos escrevi um texto que se chamava Eu, aos cinquenta e hoje, na véspera de cumprir 51, já não me reconheço naquelas palavras. Aprendi coisas maravilhosas com as mulheres que vieram espiar os arcanos comigo e em algumas consultas chorei desavergonhadamente ouvindo histórias fantásticas, sinceras, corajosas.
É impossível saber quem é a pessoa que chega para uma consulta, quase sempre indicada por alguém que já esteve aqui. E também é impossível saber o que vou ouvir depois que acendo uma vela pequena, um incenso e abro o velho xale espanhol que faz às vezes de uma toalha sobre a qual vou abrir as cartas. As mulheres sempre usam destes expedientes para entender o que se passa com elas, talvez por isto enfartem menos que os homens, se estressem menos, mesmo que isto esteja mudando.
Abro o xale sobre a mesa e improvisamos juntas a criação de um espaço de escuta, de troca, e de cumplicidade. Sou grata a todas as mulheres com quem troquei segredos, truques, impressões, e fiquei mais suave neste reencontro com a grande tribo. Elas e suas histórias são o meu grande presente de aniversário deste ano.
Algumas coisas me chamaram a atenção. Da mulherada que como eu está entre os 50 e 60, o processo de desconstrução é violento. É comum a associação entre a menopausa e a adolescência, os hormônios alucinados, uma rebeldia absoluta e, um desassossego completo com identidades que não servem mais. Me chamou muito atenção uma história repetida que ouvi em várias consultas e que me fez pensar na existência de um padrão. Muitas destas mulheres, que estão atravessando a década de 50-60 têm um desejo ou uma fantasia vívida de retornar para os ex-maridos de quem já estão separadas a muitos anos, em geral daqueles com quem tiveram seus filhos. Neste momento da vida, quase sempre os filhos foram ou estão partindo e elas estão sós. Uma me disse, aquele cachorro foi o maior algoz da minha vida e agora eu não paro de pensar nele, tudo o que eu queria era poder voltar pra ele e não entendo esta loucura!
Algumas fizeram tentativas reais de reencontro que foram muito frustrantes, outras apenas divagaram e sofreram com estas saudades, e outras ignoraram simplesmente que estes senhores agora têm outras mulheres e famílias e retornaram desabadas para a casa vazia. Que desejo e que fantasia é esta, afinal? De voltar para onde, ou para quem, exatamente? Tem uma que quando vai visitar o filho que mora com o pai em outra cidade se vê acariciando as camisas do ex-marido dentro do armário, escondida, como uma adolescente retardada, ela me disse entre soluços e gargalhadas.
E quase todas admitem que poderiam ter relevado muitas coisas, feito as coisa de um outro jeito, e que quem sabe tudo teria dado certo. Mas estas são conjecturas atuais, impossíveis de serem consideradas no momento da crise dos outros tempos. Fiquei me perguntando sobre isto, sobre para onde se quer voltar? Para eles, para nós mesmas, para o que se tinha naquele tempo e que não volta mais, o tempo do atrapalho dos filhos pequenos, que tanto nos ocupava, da casa por construir, para onde se quer voltar?
Talvez se queira voltar sempre para um lugar e um tempo mágico que nos tire da angústia deste aqui e deste agora, e principalmente se queira voltar correndo porque agora não somos mais jovens e belas e infinitas.
Muitas destas mulheres voltam a repetir a consulta e a maioria ri do delírio da volta ao ex que foi vivido como uma espécie de febre terçã.
Mas elas continuam loucas e irreverentes, todas passando por abalos sísmicos, tsunamis, crises que envolvem problemas de saúde, vários e sérios, de troca de trabalho e de profissão, de casamento, de escolhas de vida. Teve uma que me disse a frase que carrego como um mantra destes tempos: – Não sei o que está acontecendo comigo, eu não me obedeço mais!
Porque este momento tão emblemático, que é um umbral e para o qual não nos preparamos, – num mundo em que ninguém se prepara para realmente envelhecer, negando a naturalidade da própria vida – é, na verdade, um momento igual a todos os demais, para o qual não estávamos nem um pouco preparadas. E tudo isto num mundo que nos nega a experiência de vivermos as nossas mortes internas, diárias, sem as quais não temos como continuar.
Muitas destas mulheres me contatam através do Facebook, onde quase sempre são maravilhosas, bem sucedidas, bem resolvidas e bem amadas. E o que vejo quando as encontro e conheço pessoalmente é sempre muito mais precário, complicado, e muito mais bonito, complexo e interessante. Uma me disse de uma forma muito serena, sinceramente, cheguei até aqui e não gosto do resultado do que construí e havia nela uma calma sábia, de quem sabe dizer para si mesma sem lástima ou culpa ou ressentimento: não gosto, mas é o que temos. E é preciso muita coragem pra se olhar no espelho deste jeito e continuar sem desistir ou se desesperar. Porque a capacidade de alegria destas mulheres, uma alegria fresca e mansa é também sem igual.
Algumas estão encantadas com os netos que estão chegando, descobrindo outras formas de amar e tecendo firmes e seguras a parte que lhes cabe nas malhas da ancestralidade. A maioria delas tem uma profunda consciência de quem não são mais e todas dizem não saber como serão daqui para frente. E todas asseguram que as amigas são parceiras indispensáveis neste momento da travessia, as que nos acompanham pra fazer a mamografia, as que viajam juntas, as que trocam confidências. Uma delas me contou da dúvida que tinha sobre encontrar ou não um cidadão que morava noutra cidade e que ela tinha conhecido pelo Facebook, ela foi, convencida pela melhor amiga que justificou: Você vai! Se não for, não vamos ter o que contar quando estivermos todas juntas no asilo! Ela foi, o namoro não rendeu, mas a história daquele mico foi para os anais da biografia das duas que já se prometeram muitas risadas juntas, na hora das lembranças.
No ano passado minha mãe que tem 79 anos ficou muito insegura na hora de fazer uma cirurgia de catarata e outra de vesícula, minha irmã que tem 40 anos se separou do marido, minha sobrinha de seis anos se alfabetizou e eu fui morar sozinha com os meus gatos e livros, desmontando uma vida familiar que já não existia mais. Brindamos a todas as nossas conquistas no fim do ano, certas de cumprir com as etapas da vida, como tem que ser, agradecendo os medos, as dúvidas e ao fato de estarmos juntas na jornada que afinal não é leve pra ninguém.
Diferentemente do que ousei dizer de mim aos cinquenta, prefiro o silêncio neste meu aniversário de 51 anos. As minhas certezas desabaram todas maduras pelo chão. Além de não me obedecer me desconheço profundamente e vivo surpresa com algumas reações e sensações, mas de uma maneira geral, mal pesem os dias e noites cheios de aflição, me sinto cada vez mais confortável nesta estrada nebulosa, onde sinto que tenho de me conduzir com mais cautela, em outro ritmo.
E fui construindo este conforto ao ouvir estas mulheres que dividiram histórias de vida maravilhosas, corajosas, tristes, dramáticas algumas, divertidíssimas outras.
Algumas se tornaram grandes amigas, e temos a sensação de que nos conhecemos de toda a vida, ali, naquele primeiro contato, despudoradas, sem tempo a perder, e isto é uma bênção.
Adquiri um ritual que talvez possa ser identificado por alguns como infantil, um pouco bobo talvez, mesmo nos dias mais difíceis – porque se desconstruir não é tarefa para fracos – acordo de manhã e agradeço confiante à Virgem e peço que me ajude a ser merecedora.
Aos cinquenta e um estou assim, rezando em silêncio, rebelde de mim e certa de que, mesmo sem saber bem o que, eu quero mais.