Procurado, desde os tempos antigos, pelas suas propriedades extraordinárias, o sangue de dragão era um produto de elevado valor comercial. Os bestiários medievais associavam a origem desta valiosa resina às lágrimas de um dragão que jazia algures no subsolo. Recolhida à mão, a excrescência que escorria ao longo do tronco de estranhas árvores era usada como corante ou medicamento.
Considerada rara, esta resina extraída do dragoeiro - uma planta da espécie Dracaena cinnabari, L. endémica do arquipélago de Socotorá - chegava à Europa através de atribuladas rotas comerciais. Os mercadores que a comerciavam contavam fábulas sobre a sua origem misteriosa, justificando assim o seu elevado preço.
Com o avanço das viagens oceânicas de portugueses e espanhóis, os relatos dos marinheiros e viajantes deram conta de importantes populações de dragoeiros nos arquipélagos atlânticos. Apesar destes exemplares pertencerem a uma outra espécie botânica - a Dracaena draco L. - a resina extraída desta Dracaenaceae característica da região da macaronésia, tinha propriedades comparáveis à que chegava de Oriente. Alguns destes dragoeiros foram trazidos para Lisboa e aclimatados em locais privilegiados, de entre os quais, o jardim de um convento de religiosos agostinhos.
A notícia da existência desta maravilha no alto daquela colina oriental da cidade circulava na Europa desde finais do século XV. Hieronimus Münzer (1447-1508), que visitara Lisboa durante o périplo que realizou pela Península Ibérica em 1494-1495, apressou-se a referi-lo na sua descrição de alguns dos prodígios que então avistou: [1]
“Il y avait [à Lisbonne] aussi un grand arbre qu’on appelle dragon, d’où coule le sang de dragon, une sève rouge. Il y a aussi trois dragonniers dans le monastère de Saint-Augustin, tout en haut du château. L’un d’entre eux était grand, tel que deux personnes peuvent à peine ceindre son tronc de leurs bras. » (Münzer, 2006, p.129)
Em finais de 1564, um outro viajante, Carolus Clusius (1526-1609), um dos mais destacados botânicos do seu tempo, acompanhou o herdeiro da família de banqueiros Függer numa viagem através da Península Ibérica. Para além das visitas a cidades e mercados, dos contactos que estabeleceram com sábios ibéricos e com agentes de casas comerciais, Clusius procedeu ao levantamento da flora hispânica. No seu trajecto percorreu montes e vales, visitou hortos e pomares de mosteiros e conventos assim como quintas de fidalgos e alguns jardins particulares afamados pelo exotismo dos exemplares botânicos neles cultivados.
Durante a sua passagem por Portugal, Clusius recolheu, analisou, comparou e identificou alguns dos endemismos da flora portuguesa. As raridades descritas foram posteriormente divulgadas à comunidade erudita através do Rariorum aliquot stirpium per Hispanias observatarum historia (Antuérpia, 1576). [2]
Para além dos exemplares endémicos da península, Clusius deixou-se fascinar pela abundância de produtos raros em circulação nos mercados de Lisboa mas também pela variedade de árvores exóticas e plantas extravagantes que cresciam nos seus jardins. O botânico ficou maravilhado com a excentricidade do dragoeiro. Entusiasmado com o exemplar que observou no jardim de um convento lisboeta, apressou-se a registar o prodígio:
Como escreveu:
“La primera vez que vi este árbol [el drago] fue en Lisboa, en el año 1564 de la salvación humana, en la parte posterior de un Monasterio dedicado a la Santísima Virgen que llaman da Gracia.”
Fascinado com a árvore, descreveu-a:
“El drago […] es un árbol alto, de lejos ofrece la imagen del pino y tiene las ramas iguales y siempre verdes. Su tronco es grueso y sostiene ocho o nueve ramas de dos codos, iguales y desnudas. […] Las hojas son muy semejantes a una espada y están siempre verdes. Nacen apretadas las unas a las otras, como las del áloe o las del lirio…”
E referindo-se à resina, escreveu:
“Su tronco es muy áspero y agrietado y durante el calor de la canícula fluye de él un humor que, condensado en un lágrima roja, se denomina sangre del dragón, motivo por el que he llamado drago a este árbol…” (Clusius, 2005, pp.69-70)
Após o seu regresso ao Norte da Europa, o botânico exibiu, com orgulho, aos eruditos ou curiosos que o visitaram, um ramo do misterioso dragoeiro que trouxera de Lisboa. Pela primeira vez, uma das maravilhas que os europeus apenas conheciam de relatos de viajantes ou de textos antigos, foi observada e apreciada ao vivo.
Para além das pedras preciosas, madeiras raras, drogas, especiarias e outros produtos de luxo, Lisboa era, naquela época, a porta de entrada no Velho Mundo de notícias e espécimenes a respeito dos quais ecoavam notícias por toda a Europa. O contacto directo com os exemplares provenientes de terras longínquas redimensionou a forma de descrever o mundo natural e provocou uma mudança radical na ciência de Quinhentos.
[1]Para uma edição recente, ver : Jerôme Münzer (2006). Voyage en Espagne et au Portugal (1494-1495), Paris, Les Belles lettres, [1495].
[2]Para uma edição recente, ver: Clusius, (2005). Descripción de algunas plantas raras encontradas en España y Portugal. Rámon-Laca, Luis y Morales Valverde, Ramon, (eds), Junta de Castilla y Léon: Consejeria de Cultura y Turismo, [1576].