Extenso, polifacetado, singular é o curriculum de Maria Antónia Jardim / A. Sinai. Mas não, não me apetece entrar em formalismos canónicos, quando a contemplação da sua produção plástica desperta sinergias oníricas. Quero essa dimensão onírica para me referir à obra de quem, fazendo interagir as belas letras com as belas artes, reclama um originalíssimo ecletismo.
Entro no País das Maravilhas mas não é Alice que encontro, outrossim a linha da fantasia; o consciente dá lugar ao inconsciente; depois, alternam posições num jogo de esconde-esconde que demanda o infinito em jeito de evasão.
É esse infinito que A. Sinai parece propor no instintivo diálogo que estabelece entre a pintura e a pertinaz demanda de uma utopia que poderá até nem o ser. Artista inspirada, coabitando embora, pacificamente, com a artesã – antecedem a pintura, o ensaio, o rascunho, o projecto – parte de uma auscultação atenta do real que metamorfoseia, e onde desvenda uma pluralidade de conexões que lhe autenticam a sua agnição, o seu estatuto epistemológico. Postulando-se no domínio do fantástico, enfeitiça através de pertinentes práticas intertextuais, de inusuais policromias, de vertiginosas ligações entre sonho e realidade, numa urgência evocadora de Kubrick. Toadas sinestésicas conferem uma plasticidade etérea a uma obra que é, antes de mais, o manifesto vivo de um locus esotérico.
Começo por aqueles quadros genesíacos das jóias; 7 quadros, 7 jóias – do Douro, do Danúbio, do Sena, do Mandovi, do Tamisa, do Mondego e do Nilo. Há algo de sibilino nesta conciliação nada inocente entre a água e o número 7. Persigo o enigma.
Água, símbolo sagrado em todas as religiões, triângulo alquímico com o vértice para baixo. Água, misticismo envolvente de crenças. Água, oposição ao fogo, elementos básicos da criação. Água das elementais ondinas, sereias e hidras. Água emoção. Água sentimento. Sentida e valorizada na paleta de A. Sinai. Imaginação e sensibilidade ostentam com tenacidade um temperamento revelador de uma capacidade de dação. A água corre, essa mesma, a dos rios, nas telas de A. Sinai. Purifica e renova.
Depois o 7, número da perfeição, prenúncio de mudanças; porta aberta entre ciclos. Encerra-se um, quero ver o próximo. Evoco Hipócrates: “O número 7, pelas suas virtudes escondidas, mantém no ser todas as coisas; dá vida e movimento; influencia seres terrenos e até conjuntos celestes”. Em A. Sinai – ou na sua arte, se é que se podem dissociar –, o anúncio da conclusão cíclica e da renovação positiva.
Para pintores como Kandinsky, a aliança do azul com a água configura um movimento de afastamento do homem, e também um outro, dirigido para o centro de si próprio, que o projecta no infinito e lhe desperta o desejo de pureza e uma sede de sobrenatural. Cor da verdade que demanda a génese e o fim da materialidade, o físico cede ao metafísico e, através da imagem, reclama e proclama novas representações. Mimesis em demanda de uma poiesis policromática.
Em A. Sinai o binómio azul – água, ainda que implicitamente, é tal-qualmente indissociável, revestindo-se de um torrencial polissémico que sustenta uma semiótica só aparentemente trivial. Teatralidade, direi, também misticismo, ascese com alguma indisciplina interior agilizam este imaginário. Desacerto e perturbação constroem a magia do visível e do invisível na perseguição do dizível.
Os elementos almam as telas. São e irradiam vida. O onírico é o espírito de sobrevivência; o céu na terra; a crença na eternidade; pelo sonho, por ele mesmo presentificam-se motivos só aparentemente inconciliáveis: o coelho de Alice esconde-se na Torre dos Clérigos; a lua mantém secretos oaristos com a estrela de David; cartas da sorte saúdam corações; estrelas do mar fundem-se com notas musicais; ovos aninham-se em cálices; Fabergé sorri; árvores joviais antropomorfizam-se – vida. Divino e profano, material e imaterial fundem-se em amplexos indestrinçáveis. Anjos/ anjas espreitam e, de forma sibilina, negam qualquer probabilidade mitológica. Sem negligenciarem o espírito, demandam a matéria. Olho-os, cheiro-os, tacteio-os; reclamam os sentidos; dispenso a hermenêutica, não a erótica. A gramática do corpo diz da negação mitológica, das penitentes asceses à vida terrena. Para tanto servem as asas.
Depois, a tentação narcísica do auto-retrato, aqui símbolo de quem está de bem com a vida. Auto-retrato da alma, do espírito, do onírico, da riqueza do mundo interior.
Cor, cor e mais cor. O dourado primus inter pares. Através dele se penetra no coração dos seres. Para Georges Romey “o dourado adquire um sentido que se afasta da ideia de ornamento. Liga-se ao sagrado, ou seja, ao que é inacessível ao profano. […] A rosa de ouro dos alquimistas, símbolo do fermento da Obra, e que C. G. Jung propõe como símbolo do Si Mesmo, seria fruto da união da rosa, configuração da totalidade da psique, com a cor dourada, símbolo do acesso ao coração do ser”. Sol, abundância, poder, ideais, sabedoria, abertura espiritual, vigor – é este o dourado de A. Sinai que, afastando o medo e o supérfluo, revitaliza a mente e a inspiração.
Podia, sim podia ceder a tentações canónicas como atrás referi. Convocaria Munch e Magritte, Miró e Chagall e outros tantos. Mas não, fico com A. Sinai na certeza de que o seu ponto de chegada foi gerado no conhecimento dos mestres mas por ela almado. O kitsch confraterniza com o surreal; ambos desafiam a ordem racional da mente e da consciência conluiando-se com o inconsciente na alquimia de sons, cores e sonhos.
Não há frivolidade, há autenticidade numa pintura que é, antes de mais, um convívio entre mundos. Por isso, neste País de Maravilhas, do outro lado do espelho precipita-se uma parafernália simbólica, uma liturgia cenográfica reveladora de novos movimentos valorizadores de imagens metafórico-simbólicas. Concreto e abstracto conluiam-se, e hesitam entre o confessionalismo lírico e a emanação de novas figurações, em jeito, por vezes, quase naïf. Emocionalização e intelectualização estabelecem um pacto de cordialidade no jogo que se projecta no espelho.
Assim, naturalmente, indiscretamente, por vezes desequilibradamente, se constrói a pintura e se intui a pintora respeitadora de valores matriciais, conhecedora do tempo, do seu tempo, que persegue com urgência, despreconceituosamente, arrebatadoramente mas com perseverança. Da sua paleta emana um efectivo hino à vida gerado na crisopeia.