Em Portugal, a Investigação Científica desenvolve-se quase exclusivamente em Unidades de I&D financiadas pela FCT, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, que acompanha a execução dos planos de investigação, exigindo pareceres de especialistas externos, e que realiza em vez de avalia quadrienalmente o trabalho realizado e os projectos que essas unidades apresentam.
Bibliografia, encontros científicos, patentes, descobertas e prémios nacionais e internacionais têm resultado desse esforço conjunto que vem afirmando internacionalmente os investigadores portugueses.
Agora, a Avaliação desse trabalho de 2008-2012 e dos planos até 2020 está em curso das Unidades de I&D da FCT de um modo que está a provocar a indignação (1) de diversas Unidades e Universidades, incluindo Manifestos (2) e Carta Aberta (3) de subscrição pública (4), acusações de fraude (5) à FCT (6) pelos avaliados em periódicos (7) ou blogues (8), etc.
As razões da contestação e da centralidade deste processo relevam de 3 factores, a saber as consequências para o futuro da investigação em Portugal; a metodologia adoptada; os vícios do processo. Observarei os itens, baseando-me em reflexão conjunta representada pela Carta da Direcção e Coordenadores do CLEPUL ao Presidente da FCT (9).
As consequências para o futuro da investigação em Portugal
Da consulta da página da FCT, onde encontramos destacados a Informação atualizada sobre a 2.ª Fase da Avaliação de Unidades de I&D 2013 (10) com o Resumo (11) e a Lista de Unidades (12), em suma: apenas 168 (52%) Unidades de I&D, com 10257 (66%) investigadores integrados, ficaram em avaliação (13) e sujeitas a ter ou não o financiamento necessário.
Significa isto que, de um modo geral, ½ ou menos da rede de investigação científica portuguesa será desactivada. De acordo com alguns, a “avaliação das unidades de investigação é parte de uma operação de desmantelamento do sistema científico português” (14).
Com isso, o papel e o lugar de Portugal no mundo serão cada vez mais secundários…
A metodologia adoptada
De acordo com acusações (15) cuja veracidade parece provada e bem documentada, a Avaliação foi feita com base num acordo de princípio que excluída, à partida (na 1ª fase), ½ dos avaliados (16). Não estava em causa avaliar, mas escolher alguns em número e % que vão sendo indicados…
Ora, nessa escolha, percebem-se desequilíbrios, assimetrias e falta de isenção: na distribuição do financiamento pela Investigação Científica em Portugal; nas palavras de Miguel Seabra “Mais de 75% da despesa em I&D concentra-se em investigação aplicada e desenvolvimento experimental” (17). Ora, até mesmo dessas mesmas áreas científicas que absorvem “mais de 75% da despesa em I&D”, vem a denúncia, publicada no Notícias Magazine (23.2.2014), Este país não é para cientistas? (18). As Humanidades têm vindo a ser cada vez mais secundarizadas. Ora, a verdade é que elas estudam o discurso e a sua dimensão hermenêutica, aprofundam, através da linguagem, o imaginário, numa compreensão dos seus mecanismos que as torna perigosa para qualquer regime…
Os vícios do processo
A Agência de Avaliação escolhida pela FCT, a ESF, a European Science Foundation (19) não assegurou a presença de Avaliadores credenciados nas áreas específicas de conhecimento a avaliar, com suficiente conhecimento das referências em função das quais ajuizar.
Nas Culturas e Literaturas de língua oficial portuguesa, os avaliadores não dominam a língua, as referências e o panorama bibliográfico que lhes permitem avaliar rigorosamente a qualidade, a pertinência e a funcionalidade do trabalho realizado; não têm em consideração que o trabalho realizado pretende, *numa primeira etapa, a constituição e o reforço de uma rede de trabalho (investigação, reflexão, diálogo e divulgação) em língua portuguesa, cujos resultados mais consensual e cientificamente validados serão, depois, traduzido para as línguas de comunicação internacional estratégica para cada uma das comunidades.
Na Literatura e Cultura Portuguesas desconhecem o panorama editorial do país, a escassez gritante de edições críticas de autores portugueses do maior relevo e de obras de referência (dicionários, nomeadamente), a pertinência da alta divulgação e da colaboração com o Ensino Básico e Secundário, a cultura em que emerge o fenómeno estético privilegiado na investigação (a tradição oral e da erudita, as matrizes e as fraternidades culturais, o diálogo em que o intercâmbio se processa).
Na Lusofonia desconhecem a História de Portugal (a bibliografia de investigação, o debate científico internacional, com participação de Investigadores lusófonos e outros, etc., centrados na lusofonia e multiculturalidade), assim como a reflexão em que as identidades e as alteridades se observam através do diálogo entre o eu e o outro, para validação científica.
A Avaliação não se tem processado de forma consistente e validada, pois não foram tidos em consideração: as conclusões do processo de Avaliação anterior (2008), nomeadamente das recomendações então dirigidas aos Centros pelos membros da Comissão de Avaliação, nem o sucesso obtido na prossecução das metas definidas; os Pareceres periódicos das Comissões Externas de Acompanhamento Científico exigidos pela FCT; o cruzamento de dados no plano diacrónico e sincrónico necessário à validação da avaliação, uma vez que não foram ponderados; os Pareceres periódicos 2008-14 dos especialistas que cada Centro convida como consultores, de acordo com critérios estritos impostos pela FCT, nem os Pareceres finais e conclusivos, extensos e fundamentados; o diálogo verificador com os Centros classificados agora com Bom, implicado no espírito universitário e num modelo de juízo eticamente definido pela tradição cultural humanista e europeia.
Não se reconhece escrúpulo na validação e na qualificação da informação: os itens nem sempre são claros, os limites e os formulários nivelam a quantidade e a qualidade, os objectivos últimos e os critérios mais decisivos da avaliação não são suficientemente claros à partida para permitirem a elaboração de relatórios mais adequados a eles.
Não houve clareza e correcção no processo de avaliação no que se refere à sua regulamentação, procedimentos, etc.
Desde 2008, registou-se sistemática alteração das regras, das condições e dos critérios de avaliação. Durante o processo de avaliação, registaram-se mudanças nos prazos, nos formulários, nas orientações e indefinição do júri. No exercício de avaliação científica a este nível não se verifica o desejável reconhecimento entre avaliador e avaliado, de modo a que este adeque a apresentação do seu trabalho ao destinatário, através de genuína, adequada e rigorosa selecção de dados a esclarecer, a evidenciar ou a dispensar de menção.
A avaliação produzida pelos júris está marcada pela inconsistência e falta de fundamentação. No plano da classificação, na 1.ª fase, foram 3 as notas quantitativas. A amplitude de variação revela inconsistência: ultrapassou os 4 valores e, em certos casos, atingiu 8. Na 2.ª fase, a nota qualitativa não exprimiu uma média ponderada das classificações da 1.ª fase, relativizando o efeito da classificação mais discordante.
No plano da fundamentação os Pareceres não sinalizam conhecimento complementar aos Relatórios (dos sites, de Relatórios anteriores, e, em especial, do Plano 2008-2102, cujo resultado é matéria em avaliação, confrontando plano/projecto e sua execução); o Relatório conclusivo não reflectiu os esclarecimentos da 1.ª resposta dos centros, demonstrando a sua atenta ponderação: quase só no que se refere ao óbvio. Por fim, e considerando a reacção dos avaliados aos resultados das avaliações, não há nem se prevê avaliação dos avaliadores e do processo de avaliação. A FCT tem reiterado a sua confiança na avaliação em curso.
Convirá, em síntese final, assinalar 2 aspectos que evidenciam uma cumulativa menorização e desqualificação da FCT e de Portugal na UE: a FCT paga a uma European Science Foundation para avaliar a investigação científica que ela própria tem tutelado, consagrando nela total desconsideração do modo como o tem assegurado desde 2008 (o de 2008 e dos pareceres das Comissões Externa de Acompanhamento Científico, cf. acima); a FCT e Portugal pagam uma avaliação a uma empresa estrangeira que não terá feito antes nenhuma avaliação de nível nacional, aceitando que a língua portuguesa seja totalmente excluída do processo de avaliação (mesmo no caso do trabalho sobre a cultura e a literatura portuguesas!) e da sua consideração no plano da produção bibliográfica, exclusão que, só por si, contraria os valores da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996) e da Carta Europeia do Plurilinguismo e os direitos inerentes à cidadania europeia (com 23 línguas oficiais, além de outras). Ora, o português é uma língua oficial da EU, a 5.ª língua mais falada no mundo, a 3.ª mais falada no hemisfério ocidental e a mais falada no hemisfério sul.
É inaceitável que a redução de financiamento norteie o processo de avaliação!…
Assim vai, pois, a Investigação Científica em Portugal vivendo o Crepúsculo dos Deuses…
Notas
(1) http://dererummundi.blogspot.pt/2014/07/confirma-se-fraude-na-avaliacao-das.html
(2) https://sites.google.com/site/tertulialetrascomvida/manifesto-contra-a-crise
(3) http://cartaaberta.pt.vu
(4) http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=manifestocontracrise
(5) http://dererummundi.blogspot.pt/2014/07/confirma-se-fraude-na-avaliacao-das.html
(6) www.fct.pt/apoios/unidades/avaliacoes/2013
(7) http://dererummundi.blogspot.pt/2014/07/expresso-governo-abre-nova-guerra-na.html
(8) http://dererummundi.blogspot.pt/search/label/Avalia%C3%A7%C3%A3oUnidadesFCT
(9) http://dererummundi.blogspot.pt/2014/07/centro-de-literaturas-e-culturas-da.html
(10) www.fct.pt/apoios/unidades/avaliacoes/2013/processo_avaliacao
(11) www.fct.pt/apoios/unidades/avaliacoes/2013/docs/UI&D-Fase1-AposAvaliacao-270614.pdf
(12) www.fct.pt/apoios/unidades/avaliacoes/2013/docs/Stage1_ResultsAfterEvaluation-locked-270614.xlsx
(13) www.fct.pt/apoios/unidades/avaliacoes/2013/docs/UI&D-Fase1-AposAvaliacao-270614.pdf
(14) www.publico.pt/opiniao/noticia/da-vergonha-da-falta-dela-e-da-incapacidade-etica-1661950
(15) http://dererummundi.blogspot.pt/2014/07/confirma-se-fraude-na-avaliacao-das.html
(16) http://dererummundi.blogspot.pt/2014/07/fct-escondeu-partes-do-contrato-com-esf.html
(17) www.fct.pt/esp_inteligente/docs/Conferencia_13052013_MSeabra.pdf
(18) http://aulp.org/noticias/revista-de-imprensa/ensino-superior/10543-este-pais-nao-e-para-cientistas
(19) www.esf.org