Durante o Concílio Vaticano II – momento em que a Igreja Católica Romana reuniu as suas autoridades eclesiásticas para discutir os temas centrais da própria Igreja e os rumos que ela haveria de tomar, o Papa João XXIII tornou um termo italiano muito famoso durante os três anos que durou o Concílio: aggiornamento, termo este que na época era a palavra de ordem para o momento que atravessava a Igreja, ele representava exatamente o sentimento do Papa de que houvesse uma adaptação da Igreja ao tempo em que ela vivia.
Traduzindo literalmente o termo para o português significa atualização. É interessante notar que mesmo a religião com os seus valores aparentemente enrijecidos, em determinados momentos históricos de suas existências precisam desse aggiornamento, seja na maneira como encararão os novos valores incorporados às sociedades, pois estes estão sempre em transição, ou no modo como passarão a compreender e interpretar os signos de sua própria fé, o que geralmente os próprios livros sagrados, dos quais se extraem os ensinamentos, irão permitir que se faça pela sua linguagem poética e metafórica.
Essa visão, da importância de até mesmo a religião precisar atualizar-se, torna-se ainda mais interessante quando notamos que a religião nunca fora criada para mudar com os tempos, mas sim permanecer como uma espécie de compêndio – sobretudo na cultura judaico-cristã do conceito de Deus imutável, que nunca se altera em sua vontade e essência – de valores morais e ensinamentos a serem sempre seguidos à desprezo das mudanças que a todo o momento ocorrem nas sociedades.
No entanto seria difícil – e isso qualquer pessoa que frequentou um curso fundamental de História Geral pode afirmar – imaginar que a Igreja Católica Romana continuasse a queimar possíveis bruxas ou praticantes de outros credos em fogueiras, ou mesmo que ainda houvesse um Santo Ofício e a figura da excomunhão. Verdade é que toda religião atualiza-se ao tempo em que vive, com mais ou menos demora, principalmente em nossa época em que a globalização aproximou os diferentes mundos, e já não se permite absurdos em nome da fé.
Outra palavra que carrega essa expressividade da mudança é metanóia, vinda do grego representa a mudança de pensamento, uma transformação radical no modo como se vive. Para a psicologia, segundo Carl Jung, é um processo de reforma psíquica de autocura, uma resposta no tratamento de surtos psicóticos agindo positivamente na reconstrução da personalidade, já para a religião é o momento de conversão do novo fiel, o seu arrependimento e todo o processo que ele inicia após isso de constante modificação de seus hábitos, Peter Senge, autor de A Quinta Disciplina, liga a definição da palavra à mudança organizacional e afirma que antes de se fazer uma mudança na estrutura de qualquer empresa é necessário promover alterações na mente de seus colaboradores.
Essa metanóia, a constante mudança mental vivida pelo homem, é o que em nós há de mais fantástico diante da vida. Constantemente somos impelidos às mudanças, desde as menores até às maiores, que fazem as pessoas mais próximas de nós dizerem ‘você está irreconhecível!’, e questionarem também se elas de fato nos conheciam antes. Há infinitas explicações para o motivo de mudarmos: o amadurecimento, traumas, circunstâncias, relacionamentos… Numa lista sem fim temos os motivos mais variados de nossas constantes mudanças.
No entanto há uma necessidade de mudança intrínseca ao homem. Dessa nenhum de nós podemos fugir, por mais que queiramos. É como um bichinho dentro de nós lutando contra a mesmice e monotonia de nós mesmos. Desejamos simplesmente fazer esse aggiornamento necessário à nossa vida interior, sem o qual nos sentimos estranhos à vida, alheio aos grupos nos quais vivemos. Essa urgente necessidade humana de mudança é aquilo que nos faz desejar, a depender da idade, fazer uma tatuagem, trocar os amigos, colocar um piercing, mudar a cor do cabelo, descobrir uma banda nova etc., coisas externas que são feitas na busca dessa nova descoberta de nós mesmos.
A cada dia mais rapidamente a sociedade em que vivemos muda. No mundo globalizado nações inteiras servem de exemplo às outras, podemos assistir derrubadas de governos online, execuções e genocídios de diferentes lugares do mundo ao vivo, já há muito não estamos mais isolados do resto do mundo em nossas casas, ruas, cidades e estados. É o grande desafio do homem contemporâneo fazer esse exercício de metanóia, quebrar – cada vez mais imperiosamente – seus velhos padrões de pensamento para encontrar-se com o novo, tanto dentro dele mesmo quanto externamente.
Na política, na religião, na família ou em qualquer outro segmento social é absolutamente necessária a busca da compreensão do momento em que se vive para aggiornare a linguagem, o modo, a prática, ao exato sinal emitido pelo tempo. Religiões, ideologias políticas, instituições, sociedades e civilizações podem simplesmente desaparecer sem esse exercício de compreender o tempo para fazerem reformas.
Sendo a mudança – e sua necessidade – uma força assim tão grandiosa é inevitável também para nós não vivermos essa espécie de ambivalência de metanóia e aggiornamento. Torna-se, assim, condição para se ter vida, ou o que pensamos como vida de qualidade, assimilarmos os sinais que a nossa própria existência dá a nós mesmos para darmos um crack em nossos antigos parâmetros e construirmos algo novo, mais adequado ao momento da vida que atravessamos.
Leon C. Megginson disse a frase célebre – atribuída erroneamente a Charles Darwin – “não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças”, não é por acaso que o pensamento é atribuído ao pai do evolucionismo, torna-se de fato condição indispensável à sobrevivência, seja humana, institucional ou de qualquer outra espécie, o aggiornamento às mudanças.
Camões, em um de seus poemas sobre a mudança, afirma: “E afora este mudar-se a cada dia / Outra mudança faz de mor espanto, / Que já não se muda como soía”. O poeta português traz outra face da mudança, talvez mais cruel e inevitável, a afirmação no último verso de que a própria mudança muda. Sem nos adentrarmos demasiado na metafísica da poesia, Camões está afirmando que até mesmo o jeito de mudar sempre muda. Por isso nossas fórmulas de nos livrarmos do desejo de mudança não nos satisfazem todas as vezes.
Podemos mudar a cor do cabelo, trocar os móveis de lugar, perdoar um amigo que nos magoou, começar um novo relacionamento, aderir a alguma religião, começar um novo curso, viajar, trocar de emprego, casar e ter filhos. Mas nada disso irá funcionar sempre que o desejo de mudança pintar. Nada disso funcionará quando o tempo exigir metanóia de nós. Por exemplo, começar um novo relacionamento com a mentalidade do antigo pode ser um fiasco, trocar de emprego levando consigo as manias que possuía no último é o segredo para o insucesso. Por vezes a nossa necessidade de mudança é apenas a de uma troca de pensamento, a construção de uma nova crença, a aceitação de uma característica pessoal, não necessariamente algo externo.
Inevitavelmente, feliz ou infelizmente – este último apenas para os mais moralmente conservadores – a mudança acontece independentemente de nós. Se tudo está mudando neste exato momento, seria bom que cada um, dentro da medida de sua necessidade de mudar, pudesse responder positivamente a esse desejo, senão só resta esperar pelos acontecimentos e ver as mudanças como mero espectador, frustrar-se com os homens, o tempo e a sociedade em que vive. Qual foi a última mudança que você sentiu vontade de fazer? Talvez já esteja atrasado!