“Uma coisa que eu escrevi sobre um bandido, sobre um criminoso chamado Mineirinho, que morreu com treze balas, quando uma só bastava […] O que me deu uma revolta enorme. Eu não me lembro muito bem, já foi há bastante tempo, qualquer coisa assim como o primeiro tiro me espanta, o segundo tiro não sei o quê, o terceiro tiro coisa […] o décimo segundo me atinge, o décimo terceiro sou eu. Eu me transformei no Mineirinho massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava. O resto era vontade de matar, era prepotência”. – Clarice Lispector em entrevista à TV Cultura, em 1977.
Clarice Lispector sempre foi uma figura estranha ao seu tempo, cercada de mistérios, sempre se especulou muito sobre ela – e isso muito se deu em consequência de suas obras ‒, ora diziam que ela era uma bruxa, ora seus textos eram tomados como feitiçaria, noutras era vista como uma louca. No entanto, nada disso havia em sua obra. Sua busca maior era pelas coisas mais intrínsecas ao homem, aquelas coisas reservadas no âmago.
Por isso suas personagens não raramente descobriam-se em situações inusitadas e, como que em uma espécie de arrebatamento, – o que se chama epifania – adentravam em lugares mais recônditos do interior humano, e ao mesmo tempo dentro da própria Clarice, pois muitos de seus personagens eram alter ego, para dissecar sem necessidade alguma de compreender, apenas revelar o que de mais profundo se passa no interior dos homens.
Um fato talvez desconhecido da vida de Clarice Lispector, sobretudo após o seu grande sucesso nas redes sociais, é que ela era formada em Direito, embora nunca exercera a profissão, por ser a Literatura sua área máxima de realização. Em 1939, foi aceita para a Faculdade de Direito da então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Certamente, esse fato específico, a sua formação em Direito, contribuiu para a construção do seu pensamento em sua crônica Morte de Mineirinho publicada em seu livro Para não Esquecer, 1978. É nesta crônica em especial que vemos a nuança da formação em Direito de Clarice Lispector. Impactada pela maneira como foi morto um criminoso famoso à época, ela nos leva a uma profunda reflexão sobre a justiça, a alteridade, a segurança social e, por que não dizer, também os Direitos Humanos tão apregoados em nosso tempo.
Ela, que erroneamente foi tomada por sua geração como hermética e pela nossa com igual erro como pop, nunca possuiu grandes pretensões de modificar as coisas com a sua escrita, ao contrário, declarava-se uma amadora, porque escrevia apenas quando queria e declarava-se morta diante de seus hiatos – e nisso notamos o papel maior que a inspiração representava em sua criação. Ao rejeitar seguir as carreiras do Direito, Clarice Lispector não estava rejeitando o papel que este é capaz de assumir na sociedade, todavia estava entregando-se a sua inspiração maior: escrever.
É inegável o papel da sua obra para a Literatura brasileira. Poucos escritores foram capazes de ultrapassar o véu que separa o lado de dentro do que está fora, para nos oferecer a cada trabalho um verdadeiro manual das imensas contradições da alma humana como o fez Clarice Lispector e, além disso, recriar a escrita de uma maneira puramente pessoal sem nos levar ao mero desabafo.
Assim, uma análise apurada de qualquer texto de sua obra nos oferecerá olhos mais sensíveis, parâmetros com os quais poderemos olhar para a vida e, talvez, compreender ou sentir, o que há no outro, na vida humana, de maneira mais aguçada, além de nos permitir compreendermos a nós mesmos, em um autoconhecimento experencial encontrado a todo momento nas produções de Clarice Lispector.
O contexto da Crônica da morte de Mineirinho
“Na Rua da América, por onde tem uma das entradas para o Morro de Previdência, desde às primeiras horas da tarde de ontem, quando chegou a primeira informação de que ‘Mineirinho’ ali se encontrava, transformou-se numa verdadeira praça de guerra: cerca de 100 policiais, armados de metralhadoras e com ordem de capturá-lo (de ‘qualquer maneira’) vasculhavam as ruas da favela. Já às primeiras horas da madrugada de hoje, os policiais deslocaram-se para o Morro de Mangueira, onde o marginal possui muitos amigos. Sua prisão poderá ocorrer ainda hoje. Os policiais estão informados de quais as residências (barracos) onde Mineirinho poderá fugir ao cerco policial”. – Diário Carioca, 29 e 30 de abril de 1962.
José Miranda Rosa, nascido em Minas Gerais, por isso “Mineirinho”, foi um dos criminosos mais famosos e procurados na década de sessenta no Rio de Janeiro. Dono de três fugas, duas da cadeia e uma do manicômio, além de vários assaltos no comércio do Rio de Janeiro à luz do dia e atentados contra a polícia militar, ele estava condenado a mais de um século de prisão.
Devoto de Santo Antônio, Mineirinho lembrava Clarice Lispector em relação às constantes especulações que dele se faziam. Acreditava-se, por exemplo, que ele possuía sete vidas, ou que era um homem com poderes mágicos, e também foi considerado louco. No entanto, na Mangueira, comunidade em que sempre viveu, era admirado e protegido por todos e visto como uma espécie de Robin Hood.
“A Polícia completou, ontem, o quinto dia de perseguição a ‘Mineirinho’, travando demorado tiroteio com ele e quatro comparsas, que se ocultavam no barraco onde sempre morou o delinquente no morro da Favela e de onde escaparam rolando por uma ribanceira de 25 metros de altura.
Depois desse episódio, ocorrido quase às 20 horas, as turmas da Delegacia de Vigilância e da Subseção de Olaria perderam todas as pistas do bandido, que as autoridades, apesar de tudo, ainda esperam encontrar, vivo ou morto, nas próximas 24 horas, contando com a traição de seus adversários e com a vigilância dos ‘olheiros’ que mantêm disfarçados em todos os morros da cidade”. – Diário de Notícias, 29 e 30 de abril de 1962.
Mineirinho estava já há bastante tempo dando um trabalho imenso para a polícia do Rio de Janeiro, não à toa era procurado vivo ou morto. Sua fama era imensa não somente no estado do Rio de Janeiro, mas ganhava o país, e a saga pela sua captura noticiada diariamente nos principais jornais. E, talvez, o mais espantoso: era um homem querido pela sua comunidade. Em seu enterro compareceram multidões de pessoas, é claro, em grande porção de curiosos para saber se, de fato, ele estaria mesmo morto.
Clarice Lispector, à época dos acontecimentos em torno de Mineirinho em 1962, era cronista da revista Senhor desde 1958. O conselho editorial da Senhor encomendou a Clarice Lispector um texto sobre o ocorrido, que seria publicado um mês após a morte de Mineirinho. Foi então que ela produziu Um grama de radium – Mineirinho, em que nos retira da frieza de uma caçada a um bandido para nos mostrar em um exercício claro de alteridade que Mineirinho, antes de tudo, era um homem.
“Treze vezes varado por disparos de metralhadoras ‘Ina’ e trajando blusão verde, calça preta e meias azuis, ‘Mineirinho’ foi jogado morto no capinzal existente a 5 metros do meio-fio do quilômetro 4 da estrada Grajaú-Jacarepaguá. O motorista Arcílio Meneses (Rua ‘E’ no 342, Juiz de Fora) foi quem deu com o corpo atirado na mata. Parou o seu caminhão na altura da Cachoeira Grande e, depois de constatar que o homem estava morto, chamou os guardas de serviço da rodovia. Em questão de minutos, os policiais identificaram o homem que tinha uma bala na perna esquerda, três nas costas, uma no braço esquerdo, uma no pescoço, uma no punho direito, uma no braço esquerdo, quatro no peito e uma no coração. Várias delas ainda apresentavam marcas de pólvora, indicando que os tiros haviam sido desferidos à queima-roupa.
Em volta do corpo não havia um único sinal de sangue, evidenciando que a morte não ocorrera naquele local. Além disso, os moradores dos barracos das vizinhanças asseguraram que ali não se travara nenhum tiroteio durante a madrugada. ‘Mineirinho’ fora mesmo liquidado em outro lugar e removido para lá.
Logo que se espalhou a notícia da localização do corpo de ‘Mineirinho’, verdadeira multidão deslocou-se na direção do quilômetro 4 da estrada Grajaú-Jacarepaguá. Foi necessário estender um cordão de isolamento sob a orientação do delegado Cecil Borer e do comissário Amado.
Às 15 horas, o cadáver chegou ao Instituto Médico Legal. Novamente outra multidão aglomerou-se para tentar ver o marginal e, no meio dela, as autoridades capturaram diversos meliantes. Hoje, os legistas farão a autópsia e, possivelmente, às 16 horas, será feito o enterro.
Desapareceu, assim, um dos criminosos mais famosos dos últimos tempos. Moço ainda tinha 107 anos de cadeia por cumprir. Preferiu a morte à cela perpétua. Por duas vezes escapara das grades e se ocultara nos morros quase inacessíveis aos seus perseguidores. Mas descendo à cidade, teve de enfrentar de igual para igual aqueles que estavam na sua pista e terminou levando a pior. Quase 300 homens andavam no seu encalço desde o dia 23 de abril, quando escapara calmamente do Manicômio Judiciário jurando que nunca mais voltaria ao cárcere”. – Diário de Notícias, 1° de maio de 1962.
Embora Clarice Lispector nunca se tenha declarado defensora dos Direitos Humanos, sua crônica refletiu a indignação e crueldade com que um homem foi tratado em sua punição pelo Estado, à forma como Mineirinho foi morto Clarice Lispector deu o nome de “crime de fuzilamento”. Certamente, embora nesta época a Declaração Universal dos Direitos Humanos já houvesse sido feita, pois data de dezembro de 1948, seria demasiado pretensioso acreditar que Clarice Lispector tenha feito sua crônica pensando nela.
No entanto em uma espécie de filosofia kantiana, ela nos leva a reflexões sobre a crueldade com que se puniu um criminoso de maneira completamente exagerada e desmedida. Ao se colocar no lugar de Mineirinho em sua crônica, ela nos convida a olharmos para um mundo como um lugar de iguais, de homens que cometem suas transgressões, de homens que precisam de fraternidade e o constante exercício da alteridade para evitarem assim os excessos que cotidianamente vemos serem cometidos pelas instituições que detém o uso da força concedido pelo Estado.
Longe estava aquele fuzilamento de dar cabo ao nome ou a história do devoto de Santo Antônio. Em seu enterro compareceram mais de duas mil pessoas, em 1967 sua biografia foi adaptada para o cinema no filme Mineirinho, Vivo ou Morto de Aurélio Teixeira, além de ficar eternizado na Literatura clariciana.
Os mineirinhos da atualidade
Diariamente milhares de mineirinhos são massacrados no Brasil e no mundo. Punições arbitrárias impostas pelos Estados, torturas, condições sub-humanas e superlotação de prisões, morosidade da justiça em proferir julgamentos, polícias despreparadas para lidar com bandidos ou mesmo com a população etc. Com a mesma fúria com que Mineirinho foi fuzilado também, infelizmente, ainda se fuzilam moradores de favelas às vezes independentemente de serem ou não envolvidos no mundo do crime.
A humanidade atual cada vez mais se torna incapaz desse exercício de se colocar no lugar do outro, importa apenas, e isso somente cresce, que o “eu” esteja protegido, seja do crime, ou mesmo da possibilidade de talvez algum dia vir a cometer algum crime. Compreender o que diz Clarice Lispector em Crônica da morte de Mineirinho é, antes de tudo, um grande exercício de se colocar no lugar do outro, reconhecer o outro como um ser igual a nós.
De maneira simples Clarice Lispector nos insere na grande dúvida: quando deve um homem tirar a vida de outro homem? Para o Direito a vida é o bem jurídico máximo a ser protegido, também o é assim nas religiões, na filosofia, e mesmo moralmente apenas, de modo quase inconsciente, sabemos que a vida é o maior bem sempre a ser preservado.
Essa discussão insere-se perfeitamente nos tempos atuais. Não poucas vezes temos ouvido – nos meios acadêmicos, inclusive – o lema “bandido bom é bandido morto”. Uma espécie de apologia ao massacre feito por policiais em favelas e trocas de tiros com bandidos. Ademais, não se pode esquecer-se das vertentes defensoras da pena de morte, incapazes de acreditar em alguma recuperação dos que se enveredam no crime, acreditam estes ser a salvação para a paz social a morte daqueles agitadores da paz pública.
Somam-se a estes os que defendem o controle da natalidade para que famílias pobres tenham a quantidade de filhos controlada para evitar mais mão de obra para o crime, esterilização de determinados grupos sociais, vertentes que mais se aproximam de uma espécie de pensamento eugênico moderno que de oferta de solução para os grandes problemas que enfrentam o país e a humanidade.
Em verdade, ao iniciar sua crônica com a premissa de que a vida é o bem maior e, portanto, indisponível, Clarice Lispector nos lembra que todos somos seres vivos suscetíveis aos mesmos desmandos que acometeram Mineirinho. Ou seja, ela está nos lembrando de que todos sentimos como sentia Mineirinho, que cada um de nós, enquanto pessoa viva, pode ser mais um, nas suas palavras, “doente do crime”.
Ao refletir sobre a morte de Mineirinho, Clarice Lispector descobre-se compadecida da crueldade alheia e, como lhe é de costume, tem uma epifania ao descobrir-se omissa. Declara-se assim uma sonsa por evitar ver a crueldade com que um homem pode ser tratado. E, a partir disso, passa a tecer uma metáfora em que relaciona a vida humana com uma casa, mas sem se esquecer de que debaixo da casa existe o terreno, onde nova casa sempre pode ser erguida.
Fala-se muito atualmente sobre a função pedagógica das penas aplicadas aos que cometem crimes. Cada vez mais, resta comprovado que as prisões não são capazes de ressocializar os que lá estão, ao contrário, agindo contra a sociedade, que tenta se proteger dos mineirinhos da vida, as prisões nada mais são que escolas do crime ou, quando não isso, verdadeiros fuzilamentos, capazes de destruir a vida de pessoas de maneira irreparável.
Não são poucos os casos, no Brasil, de pessoas completamente esquecidas dentro de prisões, ou presas por crimes irrisórios, como roubar um quilo de arroz, e que lá contraem doenças, vícios, conhecem verdadeiros criminosos e tomam assim um caminho sem volta. Para Clarice Lispector é preciso ver o homem antes que ele seja um doente do crime, ajudá-lo a construir uma nova casa sobre o seu terreno, isto é, a construção de uma nova vida, ajudá-lo na garantia das suas possibilidades.
Em artigo publicado no Jornal do Brasil, em 2 de fevereiro de 2014, A situação delicada do sistema carcerário brasileiro, o advogado criminalista, doutor em Direito, Humberto Barrionuevo Fabretti, destaca que:
“Segundo estatísticas do ICPS (Centro Internacional para Estudos Prisionais) referentes ao ano de 2013, a população carcerária brasileira é de 548 mil presos, num universo de 190 milhões de pessoas, números que chegam ao resultado de 274 presos para cada 100 mil habitantes, o que é absolutamente alto se levarmos em conta que a Argentina tem 147 presos para cada 100 mil habitantes, a Bolívia 140, a França 98, a Alemanha 79, a Espanha 147 e Portugal 136. É claro que existem países com números muito mais altos que os brasileiros, como, por exemplo, os EUA com 716, Cuba com 510, Rússia com 475 e Ruanda com 492.
Porém, uma enorme população carcerária, apesar de ser uma das causas do terrível estado do nosso sistema penitenciário, não é sua única causa.
Tal situação decorre do fato de ter o Brasil optado por uma política criminal punitivista ultrapassada, típica do século 19, que ainda acredita que o direito penal e a pena de prisão são instrumentos eficazes no combate à criminalidade, pois podem ressocializar o criminoso condenado (ninguém se atenta ao paradoxo de se pretender ressocializar alguém afastando-o da sociedade).
Assim, se por um lado o Estado brasileiro prende um número enorme de pessoas, por outro não investe nos estabelecimentos prisionais que deveriam promover a tão sonhada ressocialização, sendo que as prisões acabam por tornar-se verdadeiros ‘espaços de ninguém’, onde os condenados, ao arrepio da Lei de Execuções Penais, tem seus direitos sistematicamente desrespeitados pelo Estado, são subjugados por facções criminosas e não desenvolvem nenhuma atividade útil, como tem ocorrido há tempos no Maranhão”.
Clarice Lispector em toda a sua crônica parece não conseguir esquecer de que ela e Mineirinho são iguais. É como se ela tivesse essa necessidade imensa de se reconhecer nele para, então, poder dizer alguma coisa sobre o ocorrido, e, além disso, nos mostrar que socialmente todos somos responsáveis pelo que a coletividade se torna, porque somos todos iguais e suscetíveis aos mesmos problemas.
Todos nós desejamos um mundo melhor, mas não fazemos nada pela construção dele. Entregamos nossos destinos nas mãos de nossas crenças e deuses, esperamos sempre que o outro faça algo por nós para tornar a nossa vida melhor, cada vez mais somos apáticos em relação aos outros, pouco sensíveis à dor alheia, andamos e corremos pelas ruas desconfiados de tudo e de todos.
Desejamos que não surja nenhum mineirinho em nossa rua, bairro, cidade, estado, mas não nos engajamos com aqueles que buscam fazer algo de maneira preventiva para o surgimento de mais criminosos, fazemos o oposto disso, simplesmente segregamos e segregamos mais. Nos fechamos em condomínios, casas com cerca elétrica, carros blindados, seguranças, não saímos na rua à noite, chegamos sempre cedo em casa, porque nos entregamos à cruel realidade do crime.
É inegável o papel social que a crônica de Clarice Lispector assume. Como uma espécie de arauto, ela expõe todas as nossas omissões e comodismos em relação aos problemas que, desde aquela época, já atravessavam o país, a criminalidade, a falta de métodos preventivos capazes de evitar a perpetuação de criminosos e a quebra de uma cultura completamente errada na maneira como se encara e punem-se os crimes.
Isso tudo justificado interiormente por nós e os meios sociais em que vivemos. Por isso ela afirma que seus amigos a justificarão e seus inimigos irão cumprimenta-la, pois é de fato esse tipo de atitude completamente negligente que um inimigo pode esperar de outrem. Em verdade, quando somos omissos em relação ao que podemos fazer de maneira preventiva para evitar a perpetuação do crime, estamos sabotando socialmente a nós mesmos.
Como lhe é de costume, sem medos, Clarice Lispector adentra mais fundo no íntimo humano e revela o nosso desespero frente à insegurança que vivemos em meio à vida. O desespero de sabermos que alguém, em nome de nossa segurança ou justiça, deve sempre estar morto, o que gera mais medo ainda quando nos colocamos no lugar de Mineirinho e, como fez Clarice Lispector, ao tentarmos compreendê-lo, veremos que também nós em algum momento podemos ser desejados mortos para a segurança de outros.
Em tempos de avançada compreensão dos Direitos Humanos – e, além disso, a continuada busca para que eles sejam efetivos e não meramente formais – as palavras de Clarice Lispector parecem ter sido escritas na contemporaneidade ao condenarem a violência justificada do Estado e a arbitrariedade na forma truculenta como a justiça trata os que considera criminosos.
Recentemente, a questão dos justiceiros tomou conta das principais mídias brasileiras. Um menor ‒ mais um mineirinho ‒ preso a um poste e espancado por pessoas que estavam fazendo justiça, elas justificaram que ele fazia assaltos naquela região. Esse fato tomou conta das mídias e sua motivação gerou outros fatos parecidos.
Além disso, mais recentemente, uma mulher foi balada enquanto saía de casa para comprar pão, na cidade do Rio de Janeiro – baleada pela própria polícia – se não bastasse tamanho o despreparo policial ao socorrê-la, jogaram-na no porta-malas do carro policial e a arrastaram pela cidade, o que ocasionou sua morte. E não podemos esquecer aqueles fatos de arbitrariedade policial e do Estado que não ganham as mídias.
Infelizmente, esquecemos que quando fazemos justiça com as nossas próprias mãos, realizando nossos “crimes pessoais de fuzilamento”, estamos autorizando também aos outros que façam justiça connosco usando de suas próprias mãos. Falta-nos o exercício da alteridade usado exaustivamente por Clarice Lispector na crônica, a percepção de que aquilo que eu aprovo no outro estou aprovando também em mim. E isso envolve a nossa capacidade de indignação com os fatos que são lesivos à pessoa humana.
E a ação truculenta do Estado em relação às pessoas, sejam criminosos ou, como mais recentemente, em manifestações de rua, faz-se profundamente justificável, pois se aprovamos a ação dos justiceiros – para que livremente e aprovadamente cometam seus crimes – estamos autorizando também o Estado a reagir em igual medida.
Há defeitos aparentes de ambos os lados, tanto da sociedade civil quanto do Estado, no entanto, não podemos esquecer que “se deixarmos a justiça para as ruas teremos pessoas penduradas nos postes.” Se de um lado não toleramos a arbitrariedade da polícia em relação ao uso da força, a polícia que mata aprovadamente sem pena, de outro nenhum justiceiro, por mais “justo” que se considere, pode sentir-se autorizado a exercer a justiça, porque quando o faz já está cometendo seu crime pessoal e não fazendo algo que sequer se aproxime da justiça.
Clarice Lispector, por fim, nos mostra que antes de uma pessoa ser um criminoso é alguém que pode refazer-se, mudar. A constante e inevitável mudança humana. Porque o que vemos de um alguém é apenas a casa, não o terreno. Vemos aquilo que externamente nos é permitido ver, não compreendemos o todo. E nisto consiste o grande brilhantismo da sensibilidade de Clarice Lispector: ser capaz de enxergar, antes de tudo, o que há dentro de cada um, nossa humanidade inegável, nossa humanidade que ela não escondia de ninguém.
Quando alguém é morto, seja de qualquer maneira, o terreno já não existe, quando se mata alguém destrói a totalidade do ser, a próxima chance, a capacidade de mudar, a garantia da possibilidade. Em outras palavras, Clarice Lispector estava nos perguntando se a algum homem pode ser dado o direito de tirar o terreno – toda a vida e expectativa de – outro homem. Por isso quando alguém mata, sempre mata um inocente, porque não está somente destruindo a casa, isto é, o externo, está também destruindo toda uma vida interior que poderia ser diferente, talvez, se vista de maneira diferente.
As aspirações de Clarice Lispector na compreensão do fenômeno criminoso coadunam-se com as mesmas aspirações dos variados defensores dos Direitos Humanos ao redor do mundo. Mais uma vez está a Literatura a nos oferecer outros olhos para que não nos percamos em meio à vida vendo apenas aquilo que é aparente ou externo, mas, como Clarice Lispector, adentrarmos mais a fundo em questões que sempre estão cercadas de senso comum, ignorância e interesses diversos.
Crônica da morte de Mineirinho
“É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que esta doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: ‘O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no Céu’. Respondi-lhe que ‘mais do que muita gente que não matou’.
Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordem, e com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for preciso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente – não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo e Mineirinho – essa coisa que move montanhas e é a mesma que o faz gostar ‘feito doido’ de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador – em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, não me perdi, experimentei a perdição. A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porquê adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma. Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila, e que os outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo – uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do S. Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muita séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno”. – Clarice Lispector, 1962.