No exato momento em que escrevo este artigo, tento me lembrar de situações em que “sonhei acordada”, em que divaguei mentalmente para bem longe. Então me lembro da minha playlist do Spotify, e dos inúmeros cenários que costumo criar ao ouvir cada música na companhia dos meus inseparáveis fones de ouvido.
Acho que você me entende, né? A música tem esse poder de nos teletransportar para cenários, pessoas, ambientes, e emoções tão distintos, que uma hora estamos em um país estrangeiro, outra hora estamos na balada, outro momento na companhia de um amor, quiçá curando uma paixão não correspondida.
E o que dizer daquele dia enfadonho de trabalho, que faz você se imaginar (por horas) em uma praia maravilhosa enquanto tenta escrever um relatório (que não sai)?
Enfim, tem de tudo. Tem de tudo no mundo dos sonhos, e a mente é a grande protagonista.
Divagar mentalmente é normal e faz parte da capacidade humana de imaginar. O problema é quando as fantasias ocorrem em excesso a ponto de causar transtornos na vida pessoal, profissional e nos relacionamentos interpessoais. Á esta condição patológica damos o nome de Devaneio Desadaptativo ou Transtorno do Devaneio Excessivo.
No entanto, antes de nos aprofundarmos sobre as características do Transtorno de Devaneio Excessivo, vamos diferenciá-lo da Divagação Mental.
Divagar mentalmente é uma prática inerente ao ser humano, visto que somos invadidos por pensamentos e indagações o tempo todo. As únicas formas de dificultarmos esse processo são por meio da meditação ou quando estamos muito focados em algum trabalho ou atividade. Fora isto estamos na maior parte do tempo divagando, caminhando sem rumo pelas estradas da mente. Alguns significados até referem-se à divagação como uma forma de pensamento não relacionado com a tarefa. Justamente porque divagar nos tira do foco do que estamos fazendo, e nos direciona para um mundo de fantasias e possibilidades.
Muitas pessoas, por exemplo, divagam como uma alternativa para lidar com problemas, tédio, frustrações, ansiedades, estresse, sobrecarga de trabalho ou porque estão planejando algo novo em sua vida. Outra observação curiosa é que essas divagações tornam as pessoas mais felizes do que quando estão exercendo suas atividades cotidianas. É o que aponta um estudo publicado na revista Science, por pesquisadores de Harvard. Nele os pesquisadores concluíram que apenas 4,6% da felicidade de uma pessoa estava relacionada com sua atividade presente, contrastando com 10,8% de felicidade atribuída quando se está divagando.
Além da felicidade que o ato de divagar trás à mente humana, descobriu-se também que é nesse momento que o cérebro está em maior atividade. Isso explicaria o pensamento criativo, diz Charles Fernyhough, professor de psicologia na Universidade de Durham, no Reino Unido, à uma matéria para a BBC. Ainda segundo o neurocientista, divagar é uma forma de organizar as ideias e se planejar para atividades futuras. “Mesmo em um estado mais tranquilo, o cérebro ainda tem muito a fazer”, conclui.
Mas e quanto aos devaneios excessivos? Como saber quando estamos divagando, e quando estamos submersos em devaneios?
Segundo um artigo publicado em 2023 por pesquisadores da Universidade de Warwick (no Reino Unido), a principal diferença entre a divagação mental e os devaneios excessivos, é que no ato de divagar os pensamentos são intrusivos, ao contrário dos devaneios excessivos em que a atividade mental é proposital.
Em outras palavras e citando um exemplo cotidiano, quando você está cozinhando você precisa estar focada para preparar a refeição para a família. No entanto, você se lembra que na próxima semana sua filha irá se apresentar no balé da escola, e começa a divagar sobre cada detalhe da organização do evento. De repente, ela entra na cozinha, chama a sua atenção, e você imediatamente deixa de divagar para se ater ao que estava fazendo. Ou seja, mesmo divagando você não queimou nada, e nem causou transtornos na cozinha. Sua mente e pensamentos não te paralisaram, só te desviaram do foco do que você estava fazendo. A única ressalva com relação á divagação mental, é que você pode perder informações importantes entre uma mudança de foco e outra.
Assim, divagar mentalmente se assemelha mais a um desvio (uma distração) de atenção da tarefa principal, para uma mudança de foco para atividades internas. Do ponto de vista profissional, divagar pode contribuir para processos criativos e geração de novas ideias, pelo fato de pausar a mente durante momentos de estresse. Outra característica da divagação mental é que ela tende a ser orientada para o futuro, bem como para a resolução de problemas.
Já os devaneios excessivos são projetos mentais que seguem uma estrutura narrativa. É como um escritor que antes de desenvolver sua obra, a elabora detalhadamente em sua mente. Desde os personagens, suas características, a que grupo familiar farão parte, como cada um irá dialogar, a que cenário se encontrará cada um etc. É como se pessoas com devaneios excessivos fossem roteiristas. Sob este viés, devaneios são projetos mentais com um objetivo específico, que está ligado a uma intenção ou desejo.
Ainda de acordo com algumas definições, devaneios são formas de divagação mais profundas, ligadas à fantasia e á imaginação. Eles ocorrem quando a pessoa é levada por sonhos, imagens ou pensamentos intensos. É como se a pessoa estivesse no “mundo da lua” e precisasse da orientação de alguém próximo para voltar para a “realidade”. Inclusive a série Mundo da Lua exibida durante a década de 1990 pela TV Cultura, ilustra aspectos bem importantes de quem devaneia excessivamente. A cada episódio, Lucas Silva e Silva, um garoto de 10 anos, narra histórias incríveis em seu gravador, ao mesmo tempo em que se teletransporta para elas em um mundo de sonhos e fantasias. Para voltar á “realidade”, o garoto quase sempre precisa “ser acordado” por alguém da família, a fim de voltar a seus afazeres.
É importante ressaltar que ter algum episódio de devaneio é normal, pois permite nos adaptar a situações que ainda não vivemos, ou que não temos a possibilidade de experienciar, além de melhorar o nosso humor. A grande questão é quando esta prática se torna cada vez mais intensa e repetitiva na vida do sujeito, a ponto de interferir e causar prejuízos em suas atividades diárias. Quando isto ocorre, estamos diante de um Transtorno de Devaneio Excessivo.
Como reconhecer o Transtorno de Devaneio Excessivo
Também conhecido como devaneio desadaptativo, o transtorno de devaneio excessivo é um distúrbio em que as pessoas passam horas mentalmente imersas em narrativas fictícias e fantasias próprias, chegando a se desconectar do ambiente ao seu redor. É como se o indivíduo estivesse vivendo em um “mundo paralelo” e preferisse uma vida de fantasia á convivência com personas da vida real. No entanto, é importante salientar que este transtorno não tem relação nenhuma com a esquizofrenia, pois a pessoa não apresenta delírios nem alucinações, além de ter consciência de que os seus devaneios não são reais.
Embora não seja clinicamente catalogado em manuais de saúde mental, o transtorno de devaneio excessivo merece atenção por parte de psicólogos e psiquiatras, pois pode ser tratar de um mecanismo de enfrentamento para lidar com traumas, dores, crises e até mesmo a solidão. Nesse caso, há a possibilidade de a pessoa perder o controle de seus devaneios, por tentar substituir seus conflitos emocionais pelas fantasias compulsivas. Ainda de acordo com este editorial de saúde mental, o transtorno pode estar associado a outras condições psiquiátricas como transtornos dissociativos, depressão, ansiedade, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade e transtorno obsessivo compulsivo.
Para entender mais a fundo e compreender quais os sintomas relacionados com o transtorno de devaneio excessivo, bem como identificar possíveis mecanismos que provocam estes devaneios, dois pesquisadores realizaram em Haifa (Israel), um estudo detalhado com 77 indivíduos autodiagnosticados com o transtorno. Durante 14 dias estes indivíduos foram avaliados, apresentando quadros de depressão, ansiedade, comportamentos obsessivos compulsivos, emoções de alegria e tristeza, devaneios excessivos, além de episódios de dissociação.
Foi constatado que o aumento dos devaneios desadaptativos estava justamente atrelado ao aumento de emoções negativas, bem como de comportamentos obsessivos e de dissociação que a pessoa apresentava. Ou seja, a presença de uma doença psiquiátrica ou questão de saúde mental, poderia predispor uma pessoa a desenvolver devaneios desadaptativos ou transtorno de devaneios excessivos.
Os psiquiatras do estudo ainda observaram as seguintes características associadas ao transtorno de devaneio excessivo:
São de natureza voluntária, ou seja, a pessoa escolhe se envolver mentalmente em seus enredos fantásticos, os quais cria personagens detalhados e vívidos;
Durante os devaneios excessivos a pessoa é capaz de sentir emoções como alegria ou tristeza, como se estivesse de fato vivendo aquela cena no mundo real;
A pessoa pode passar horas sozinha em seus devaneios, sem sentir os efeitos do tempo, e muitas vezes se queixar de não conseguir “desligar a mente”, para voltar a se concentrar no que estava fazendo;
Há uma conexão entre devaneios e movimentos físicos como gesticular, pular, andar em círculos, mexer os braços e as pernas, enquanto devaneia;
Embora a pessoa seja capaz de manter relacionamentos com colegas de trabalho, amigos e família, acaba por vezes negligenciando esses relacionamentos em favor de repetir ou elaborar seus devaneios.
Algumas pessoas relatam que fazem uso dos devaneios como uma atividade compensatória, cujos personagens das narrativas são versões “melhoradas” de si mesmos. Outros, ainda comparam seus devaneios á cenas de novelas, cujos personagens envelhecem com o passar do tempo.
Dessa forma, os critérios para definir os devaneios como um transtorno ou comportamento desadaptativo, está no fato deste se apresentar na vida do sujeito como uma atividade de imaginação imersiva e viciante que leva ao sofrimento, impactando tanto as relações interpessoais como o seu desempenho laboral. Ainda, segundo o artigo, envolver-se em devaneios por horas pode levar a pessoa a estados de despersonalização e desrealização, pois o foco está atrelado a fantasias internas, e não na realidade ao seu redor.
No entanto, mesmo diante dos prejuízos e transtornos que os devaneios desadaptativos provocam, ainda há estratégias e formas de tratamento. Vamos conhecer algumas delas?
Como tratar o Transtorno de Devaneio Excessivo
A importância de se buscar um tratamento, está no fato de que o transtorno de devaneio excessivo é uma compulsão forte, tal como um vício. Não existe uma “receita de bolo” ou tratamento padrão para se tratar o transtorno, mas sim às comorbidades associadas a ele, tais como depressão, ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo, dissociação etc. Neste caso, um tratamento composto de psicoterapia como a terapia cognitivo-comportamental, atrelada a intervenção medicamentosa (quando necessário) pode ser de grande valia.
A terapia é peça-chave para compreender as causas subjacentes por trás dos devaneios excessivos, ajudando o paciente a lidar melhor com seus traumas, dores e conflitos emocionais. Um artigo publicado pela Harvard Medical School ainda acrescenta algumas estratégias que podem ajudar a prevenir os devaneios excessivos, a saber:
Estabelecer e manter uma rotina de sono saudável;
Desenvolver uma dieta equilibrada e uma rotina de exercícios físicos;
Receber apoio de amigos e familiares;
Praticar exercícios de respiração (a fim de acalmar a mente e reduzir o estresse);
Se expor diariamente á luz solar.
Outra estratégia bastante eficaz é manter a cabeça ocupada com alguma tarefa prazerosa. Isso ajuda a manter o foco, e evita que a pessoa crie suas próprias fantasias, a fim de lidar com algum desprazer. Como vimos, o transtorno do devaneio excessivo ou devaneio desadaptativo é uma condição clínica que envolve o desenvolvimento de fantasias compulsivas e comportamentos viciantes. O pesquisador israelense Eli Somer desenvolveu uma escala projetada para aferir a intensidade, duração e impacto diário dos devaneios, a Maladaptive Daydreaming Scale/MDS (Escala de Devaneio Desadaptativo), composta por um questionário de 14 itens. Quanto maior for a pontuação, maior será a gravidade dos sintomas.
Concluindo, sonhar acordado pode ser sinal de algo patológico sempre que causar disfuncionalidade e angústia na vida do sujeito. Assim como uma droga, os devaneios desadaptativos vão pouco a pouco isolando o indivíduo do seu convívio social, fazendo com que ele/ela fique perdido (a) em seus próprios pensamentos e narrativas fictícias. Com o tratamento e intervenção adequados, é possível reduzir os sintomas e melhorar o funcionamento tanto no trabalho, como nas relações.