Victoria Harbour continua, continuará magnífico, numa luz contundente acircando Novo Ano Lunar… O ferry balanceia suavemente na maré baixa embalando a partida, o regresso… E sai do ancoradouro ronronando, suave, prazeroso sulcando a água do porto…

Hong Kong ia ficando lentamente para trás, imponente e altiva na sua pujança semi colonial, semi continental, ora global…Cantonesa, sempre…

O ferry avançou lesto, sulcando as águas pacíficas de maré vazante e mesmo quando azulou já na profundidade do mar, não quis senão bambolear-se entre estibordo e bombordo, como cabriolasse entre o sol nascente e a manhã que não queria envelhecer até ao mezzogiorno…

Por vezes uma onda mais expedita e brincalhona batia de lado e espalhava salpicos no deck e na janela ecrã a bombordo… donde se podiam ver sampanas, pescando ou cargueiros em espera de entrada em bom porto… E a claridade ia invadindo o espaço circundante cheio de gente diligente, ainda ensonada, a caminho de mais um dia de labuta…

Victoria Harbour ficou para trás e apenas pequenas ilhas e a linha costeira iam pontuando o percurso curto até Macau…

Macao, antiga grafia… memento de impacto em fim de infância errante… mas isso são outras histórias, outras memórias doutros tempos felizes e de descoberta permanente…

O ferry abrandou e lesto mas vagarosamente entrou à barra e seguiu para o ancoradouro terminal, zigzagueando entre as bóias baias até se deter deixando sair quem saía na manhã luminosa…

E, ao pisar o cais, olhando ao longe, um primeiro baque bateu fundo, meio século depois, de espanto pelo novo horizonte tão diferente ele era…

O táxi, com matrícula ainda colonial, arrancou e foi percorrendo avenidas novas rapidamente até começar a rolar lentamente por entre o transito avolumado em direcção ao centro buliçoso e em início de dia de trabalho…

O destino, S. Paulo ou o que restava da igreja, ícone histórico da cidade e do porto, ia sendo lentamente aproximado por ruas cada vez mais estreitas, mas cada vez mais longinquamente relembradas como que que sussurradas pela memória dos dias passados, mas de alguma forma sempre presentes indistintamente ao longo dos anos…

É uma sensação estranha esta de as memórias nos pregarem surpresas e nos fazerem uma festa de emoções contraditórias, incomuns e aleatoriamente confusas e perdidas no tempo…

E antecipando ano lunar novo, um frémito de vozearia e movimento foi-se aproximando… Subitamente no topo da colina as escadarias de S. Paulo tornaram-se num mar de gente ascendendo aos portais da igreja… com sorrisos e gestos afáveis e curiosos… tudo perscrutando e querendo descobrir… Uma maré enchente de humanidade visivelmente feliz de alcançar este singelíssimo topo de colina encimado por ruína de igreja estranha, bem antiga, de todo extemporânea…

E um segundo baque bateu fundo e não conseguiu evitar comoção primeva e lágrimas tentativamente escondidas…num regresso nunca esperado, nem nunca esperançado…

Depois, depois vai-se recuperando o fôlego e a compostura para continuar a peregrinação inesperada e inaudita…

Lentamente vai-se descendo a colina…, olhando em volta, relembrando em volta até à praça ao fundo e ao Senado…

E parar é preciso, para retemperar, espairecer e aquilatar a passagem do tempo e dos percursos que foram ficando pelo meio…

Meio dia, meio século de intervalo…tempo de poupar as palavras e saciar o apetite…

Hotel Central… magia ao meio dia… conversa e mais conversa enquanto se espera para conter o apetite bebericando delicadamente um branco fresco por entre uma sala acolhedoramente histórica e muito bem mantida na sua original estrutura e decoração quase que intocada pelo tempo…

Terceiro baque bateu fundo, mas a comoção não fugiu, apenas recordou e tentou conter ingloriamente a memória…

Cinco décadas em três baques que bateram fundo… Histórias e percursos de vida relanceiam e entrelaçam-se em segundos avidamente consumidos e nunca exprimidos ou tentativamente transmitidos…

Talvez comecem tempos, com tempo para o relato da memória, dos momentos vividos… Na ingratidão do tempo e do espaço, terríveis sumidores e destruidores de emoções e experiências, talvez possa haver tempo e espaço para ainda transmitir o intransmissível viver do quotidiano aqui passado, noutros tempos e espaços vivido e experimentado…

A oriente, a luz é incomensuravelmente presente e apenas nos damos conta disso quando de lá os raios do sol penetram um vitral de uma rosácea ou painel de catedral gótica lá na ponta ocidental europeia, na foz do Tejo, num dia luminoso de qualquer estação do ano…

Da colina de S. Paulo, em Macao, à beira Tejo em Lisboa, com o Atlântico ao largo, só mesmo a viagem vale e valerá sempre a pena…

Talvez por isso Camões cantasse mais esta odisseia, que Homero bem o ensinou na demanda mediterrânea de Ulisses entre oriente e ocidente transmitida, tantas vezes transmudada até hoje… por cada viajante cronista e contador da História e não apenas de estórias…

E talvez por tudo isto o escriba intermitente possa continuar, ainda, a registar na página em branco, alguns rabiscos de viagem vivida e, sobretudo, sentida, experimentada e não silente…