In memoriam.
23/8/2024

Com amor vivi e parti.
Que assim permaneça nos vossos corações!

(GR)

Poesia sem fim [:] onde está a Graça[?]

(AJB)

Maria da Graça. Graça. Gracinha. Para muito poucos, Bia, diminutivo que o Marido transferiu da Mãe (cujo coração foi excedido pela alegria diante das fotos do seu casamento) para Ela.

Em sofrimento, pressentiu a partida e preparou-a.

Deixou de olhar espelhos e de se esforçar por mais uma frustrada e sisífica recuperação, buscando no fundo de si e de nós as recordações da felicidade de outrora, de um mundo que já não é o nosso, distanciado pela história.

Despediu-se dos Familiares e Amigos que a visitaram: no hospital, ainda, o Genro, Zito & Clo; na residência, a Filha, a Neta e o cão, os Melos, os Paulo, as Teixeira Alves, os Nahak Borges… evitando fazê-lo com os que pensaria rever ainda (Salete e São, Natália), enviando saudades a todos.

Foram despedidas serenas, dizendo-se preparada para a viagem, embora confessasse em tom comoventemente infantil, numa só ocasião, “…mas tenho medo.” A Neta, a última a estar com Ela, disse-lhe que não o tivesse, pois teria a recebê-la “o seu Príncipe, um cavaleiro de armadura branca e cavalo igualmente branco” rodeado dos Pais e Irmãos que a amavam e dela tinham saudades…

A cada um, a lição adequada, colhida no mais íntimo do ouvinte, sempre aconselhando a confiança em si mesmos e a relativização dos problemas, pedindo que não A chorássemos nem nos enlutássemos pelo que é natural e simples lei da vida, antes cultivássemos a alegria e A recordássemos como Ela foi e não como estava… e tantas belas e boas memórias tínhamos dessa comum existência feliz…

Assim fechou Ela mesma o ciclo de uma existência preenchida e afectuosa, com o selo da paz, da harmonia, da serenidade.

Depois, começou a recusar comer e beber, rodeada de carinho empenhado em contrariar essa recusa.

Adorava flores. Que lhe encheram a casa e o coração nos 2 últimos aniversários na viragem da sua última década (90 e 91) e a envolveram na despedida…

E foram as rosas, como a que o Marido lhe oferecia diariamente até lhe ir preparar a travessia, que anunciaram a partida. Na véspera, cinco rosas de Sta. Maria, três das quais em casa e duas à cabeceira, viçosas, perfumaram de esperança a última noite»»» às 15h30m, a notícia da Sua partida foi acompanhada pelo súbito murchar de todas as rosas numa última vénia. O cão deitou-se, baixou a cabeça e fechou os olhos, sentindo-A passar

Nessa noite, as quatro velas que acendíamos em prece quotidiana apagaram-se sozinhas e em simultâneo, dispensando a nossa (até aí sempre necessária) intervenção. Fora-se serenamente, uma chama apagando as outras… e iluminando a “Poesia sem fim” (conto), de António José Borges 1.

Às águas, como desejava, foi afectuosamente confiada, com o pedido de que a levassem até às que a tinham visto nascer: embalada por aquele Índico em diálogo com o continente e a ilha, essa que, vista de cima, tem a forma de um lagarto, simbolizando a perenidade. Nascera nesse anfiteatro diante do oceano que os antigos tentaram imitar no Mediterrâneo em Taormina e afins … venusianamente abençoada para bem dos que com ela conviveram. Ao fundo, ouve-se Torna a Surriento num 78 rotações do “His Master’s Voice” de Mario Lanza…

E outra parte dela reunir-se-á ao seu Príncipe terreno, adornada de rosas brancas como noiva, renovando os votos de 67 anos atrás.

Na imagem em que o coração e a rosa esfumam o retrato, lemos fragmentos camonianos e respondemos-lhes com emoção:

Alma minha gentil, que te partiste

Repousa lá no Céu eternamente

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças…

… de que estás nos nossos corações!

Deixa ficar a flor.

(David Mourão Ferreira)

Ave Maria!

Hallelujah!

Notas

1 António José Borges. “Poesia sem fim” (conto), As Artes entre as Letras (nº 369-370) 11/Set./2024, p. 12.