Na Idade Média, e antes dela, a noção de indivíduo pairava de maneira diferente, ou melhor, ela não existia. As classes sociais, muito bem formatadas, não permitiam grandes criações e muito menos a audácia de se copiar o outro, especialmente quando sua fortuna encobria (e muito) a do outro. Por isso, é possível entender como o movimento da moda aparece muito depois disso, a partir de onde se torna possível imitar e, mais, se torna possível se ver.

Luís XIV, um dos maiores reis da história da França (senão o maior), foi um dos responsáveis pela disseminação da moda e foi também o agente da construção de um dos corredores mais altamente avaliados da história, feito de um material que, até então, era raro: a Galeria dos Espelhos. Foi ali, também, onde, ao convidar parte do povo para admirar o que Luís XIV almejava que seria a França aos olhos do mundo, as pessoas viram seus reflexos pela primeira vez, fora da imitação distorcida do que viam na água ou em metais.

Quantas vezes você imaginou como seria a sua vida sem que você, literalmente, se visse? Quantas vezes você imaginou como seria viver em um cenário onde só se era visto, literalmente, por meio do outro? Será que hoje, sem reflexos, seríamos quem somos?

O artigo da revista Dazed, de Lola Christina Alao, responde com precisão: “We were never supposed to see our faces this much”. Hoje, além dos espelhos, temos as selfies, os filtros, as câmeras de alta resolução e os críticos, que após tudo isso, ainda se colocam no lugar de questionar, produzindo novos vídeos de si mesmos enquanto o fazem.

Os impactos de se ver tão constantemente já se apresentam ao lado de suas várias consequências, como dismorfia corporal, vício em procedimentos estéticos e até depressão. Mas, nesse artigo, vou ainda mais além.

Talvez, se ver tanto no espelho (e no celular) poderia distorcer a nossa verdadeira personalidade. Afinal, viver rodeados por nossos reflexos, por vezes, nos faz perceber “defeitos” que até então nunca teríamos nem mesmo visto. E, se ver rodeado também pelo reflexo do outro, tem seu impacto. Afinal, quando você é o responsável por partilhar a sua imagem, essa partilha é feita de acordo com o que você escolhe mostrar, moldando, na grande maioria das vezes, uma verdade que dura o tempo exato de um vídeo curto na rede social até que ela se torne uma verdade para você, o que pode ser bem perigoso.

A comparação, a adesão a tendências que não te pertencem e as mudanças radicais que podem vir com isso são resultados graves do que se vê hoje na nossa sociedade. Descobrir um problema que até então não era um pode impactar a nossa maneira de ver o outro e de nos perceber diante dele. Afinal, nada é “tão desastroso” quanto a falta de encaixe e falta de pertencimento.

O constante reflexo afeta nosso senso de identidade. A psicologia sugere que a autoimagem influencia diretamente nosso comportamento e autoestima. Sem a influência do espelho, talvez pudéssemos desenvolver uma compreensão mais profunda e menos superficial de nós mesmos. Poderíamos nos concentrar mais em nossas ações e interações com os outros, em vez de nos preocuparmos tanto com a aparência, que é e sempre foi uma característica mutável e muito efêmera.

A reflexão interna, ao contrário da externa, pode promover um crescimento pessoal mais autêntico. A prática de olhar para dentro, por meio de meditação ou autoavaliação, pode revelar verdades sobre nosso caráter e nossos valores que um espelho jamais poderia mostrar. A ausência do espelho poderia nos libertar de certas amarras sociais e culturais.

Sabemos que, por vezes, “a ignorância é uma bênção”. A questão "Quem você seria sem espelho?" nos convida a explorar uma existência menos preocupada com a aparência e mais focada na essência. Ao considerar essa perspectiva, podemos encontrar maneiras de nos conectar mais profundamente com nosso verdadeiro eu e com o mundo ao nosso redor.

Já fez o experimento de não se enxergar tanto por pelo menos um dia? Se sim, o que mudou em você? E, se não, que tal dar uma chance?