Quando se inicia um doutorado — ou quando se está em constante pesquisa —, recostar à cama em uma tarde de domingo com um jogo de celular à mão não é tarefa fácil. Até mesmo um diálogo supostamente despretensioso entre dois personagens ficcionais de um jogo de RPG em turno — um herói e um vilão — provoca reflexão e se constitui material de pesquisa.

Homem-Aranha e Caveira Vermelha, em união improvável contra uma ameaça à humanidade, estabelecem um diálogo também improvável. O primeiro, um rapaz nova-iorquino órfão mordido por uma aranha radioativa, combate ao crime em sua cidade. O segundo, Caveira Vermelha, também órfão, desde a infância se envolve em uma vida de crimes, encontrando em Hitler um mestre em quem se espelhar.

É preciso sempre, de antemão, quando se trata de ficção — especialmente histórias em quadrinhos —, atestar sua relevância. Parece haver uma dicotomia “material x simbólico”. É perigoso tratar os seres ficcionais como se fossem incapazes de ter verdade. Habitamos o mundo junto com as coisas, em meio a ideias que se situam em articulações entre corpos, coisas e paisagens. Considerando, então, a existência do Homem-Aranha — a seu próprio modo, e nem por isso menos real em nosso imaginário — também admitimos habitar o mundo junto com ele.

Homem-Aranha e Caveira Vermelha se constituem nas posições clássicas de herói e vilão — representando, respectivamente, bem e mal absolutos —, em oposições óbvias de objetivos alimentados por valores, em um primeiro momento, diametralmente opostos. O próprio background dos personagens é construído de forma a mobilizar elementos que expressam esses valores. Não à toa ambos são órfãos, sendo que a orfandade leva um ao heroísmo e o outro à vilania.

A partida do órfão para o mundo é caracterizada na literatura como a única forma de encontrar sua identidade e também encontrar o outro. A ausência dos pais é a ausência do elo primordial que une o indivíduo à sociedade, caracterizando perda de um referencial e também projetando vulnerabilidades.

O adolescente Peter Parker, inicialmente sem qualquer atributo valorizado pela sociedade — é nerd, magro, de baixa estatura e usa óculos — ao ser picado por uma aranha radioativa desenvolve habilidades especiais: habilidade para escalar paredes, visão perfeita, força e agilidade sobre-humanas. Em princípio, o jovem usa seus recém-adquiridos poderes para ganho pessoal, especialmente dinheiro. O assassinato de seu tio, no entanto, o coloca diante de questões morais, fazendo nascer o Homem-Aranha.

A figura do herói, que em Homero tinha um sentido de nobreza, no século V a.C. se tornou uma espécie de fenômeno religioso. De maneira geral, ao longo dos séculos, a exaltação da vontade, da ação e da bravura são características comumente associadas ao herói literário e também mítico; mesmo policiais, bombeiros ou participantes do Big Brother Brasil, no cotidiano, são ocasionalmente chamados de heróis.

Em torno da figura do herói, considerando os valores frequentemente atrelados a ela, existe uma certa obviedade quanto às suas ações. Herói é aquele indivíduo destemido que coloca o bem comum acima das causas pessoais, aquele que sobrevive em atos de coragem. Tudo isso pressupõe, então, decisões tomadas a partir de um bem maior, uma virtude invariável, acima de questionamentos.

E existe tal concepção?

Assumir que um herói toma atitudes baseadas em um bem enquanto valor absoluto e universal é atestar que existe um valor moral invariável histórica e contextualmente. É assumir que todas as pessoas valorizam os mesmos atributos das mesmas formas e, sob circunstâncias semelhantes, tomariam a mesma decisão. A crítica a esses conceitos heroicos quase sempre envolve implicações éticas e políticas.

O diálogo entre nossos dois personagens indica a existência de um valor moral óbvio que mobilizaria as atitudes dos heróis; séculos de idealização e romantização do papel do herói contribuíram para essa naturalização. Muitas vezes esse caráter instrucional e moralista é intencional.

image host image host image host image host image host Imagem 1: Diálogo entre Homem-Aranha e Caveira Vermelha (Marvel Strike Force - Scopely - 2022.

A missão para a salvar a humanidade depende da instalação de explosivos em uma nave cheia de prisioneiros. Sob a ótica do Caveira Vermelha, as vidas perdidas durante a explosão da nave seriam o que conhecemos por dano colateral, um mal menor. Para o Homem-Aranha, salvar ou não a tripulação não se colocava enquanto questão; era uma decisão óbvia.

A decisão considerada óbvia pelo Homem-Aranha é, na verdade, o acúmulo histórico de uma construção em torno de determinados valores, assumidos como universais e naturalizados dessa forma. Tratar sobre heróis e super-heróis — assim como vilões e supervilães — é, sobretudo, tratar moralidades:

Ao longo dos séculos o “herói” refletiu, às vezes até determinou, nossa visão moral e poética quando tentamos fazer face ao sentido ou falta de sentido da vida, ainda que a tragédia, ou, de um modo geral, o espírito trágico, responda à nossa necessidade profunda de conferir dignidade e beleza ao sofrimento humano1.

A figura do herói enquanto modelo parece não se sustentar com tanta força na contemporaneidade, em que a própria questão moral — enquanto questionamento em si — tem se colocado como produto de uma configuração histórica. O romancista Victor Hugo, já no século XIX, pregava a extinção do herói tradicional e a superação de seu culto. Não à toa a modernidade vê aumentar a popularidade da figura do anti-herói, que não se coloca à altura das expectativas associadas aos grandes heróis literários e mitológicos. O anti-herói pode ser falho, duvidoso, hesitante, muitas vezes mesquinho, mas corporificando, talvez, outros tipos de coragem, mais sintonizados com nossa época. Esse perfil de personagem ajuda a subverter e esvaziar, contestando a imagem “ideal” do herói. Subversão essa que pode tirar de nossas costas, também, o peso dos grandes feitos heroicos, ainda almejados.

O anti-herói surge, então, tratando de tensões inquietantes que se complexificam em nossos tempos: conflitos entre valores, questionamentos de autoridade, resistência a conformismo, críticas ao racionalismo e ao humanismo tradicional. Suas características paradoxais o aproximam de nossas humanidades, proporcionando identificação mais acessível.

Um diálogo como esse, o encontro entre duas perspectivas diferentes, é eficiente para explicitar os posicionamentos morais em tensão. As questões morais estão imbricadas na vida social; a dimensão moral é onipresente na vida social, mas justamente essa onipresença a torna invisível na lida cotidiana. O costume nos cega.

Valores morais não podem — ou não devem — ser tomados a priori, como princípios universais, pois quando analisadas de maneira crítica, as tradições morais são localizadas, contextuais e situacionais, podendo engendrar diferentes significados em diferentes contextos. Uma pesquisa crítica e profunda permite elaborar quais os sentidos, os usos e os contextos atribuídos pelos sujeitos aos valores morais e às ações que animam e como mobilizam essas moralidades. Então a ideia da moral como o bem viver, o correto, o justo, o virtuoso, nesses termos; pode ser desnaturalizada enquanto doutrina filosófica universal, reconhecendo esses limites para uma perspectiva preocupada com o que as pessoas pensam enquanto produzem esses valores, como produzem e como se encaixam nas ações que os mobilizam.

Em uma sociedade de capitalismo avançado, em que o individualismo pauta o cotidiano, como é possível que o posicionamento do Caveira Vermelha cause estranhamento? Caveira Vermelha, em sua fala jocosa, propõe que os valores morais não são exclusivamente guias de comportamento, não devem ser tomados a priori como princípios universais.

De maneira notória, anti-heróis e vilões humanizados — com contextos ou fins que justifiquem seus meios — têm crescido em popularidade na literatura e no cinema. Talvez por maior proximidade com os anseios e dilemas humanos, ainda que com superpoderes ou pertencendo a outro planeta. O fato é que essa identificação, ou melhor, essa relação entre humanos e não-humanos constitui também nossa experiência no mundo e de mundo.

Personagens ficcionais são constituídos de moralidades, devendo estar o mais próximo possível de um ser humano. É essa proximidade a responsável por uma verossimilhança, possibilitando engajamentos e adesões. A partir daí se estabelece um elo entre leitor e personagem, uma relação com características particulares e que devem ser analisadas considerando suas peculiaridades.

Nossas adesões a personagens — simpatia ou repulsa — são também adesões a determinadas moralidades ali representadas. Heróis e vilões, por mais fantasiosos que sejam, encarnam pontos de vista, anseios e valores humanos. É interessante perceber que, de alguma forma, a popularidade dos anti-heróis e vilões e nossa identificação com eles nos permite vislumbrar, ainda que de maneira velada, nossas próprias falhas e imperfeições, ou seja, nossa própria humanidade.

Notas

1 Brombert, Victor. Em louvor de anti-heróis: figuras e temas da moderna literatura europeia, 1830-1980. São Paulo: Ateliê Editoria, 2001.