"The driving force behind my works is my tradition. If it wasn’t for Damascus, I wouldn’t have that heritage; I wouldn’t be me. Of course, the question remains: do you have to be a traveller in order to be a cosmopolitan?". ‒ Marwan
Giulio Carlo Argan, há uns anos, ao falar do Romantismo e do Neoclassicismo, dizia que o Romantismo só poderia ser fruto do norte da Europa e que o Neoclassicismo só poderia ser mediterrânico. Porque, para o urbanista e teórico italiano, a relação que o homem mantém com a natureza determina, de alguma maneira, a relação que ele manterá com a arte. A natureza sombria, impenetrável e misteriosa do norte da Europa é refletida numa arte ensimesmada que beira sempre o abismo, onde o homem busca, sobretudo, o desvendamento. Busca dificultada pelo entorno que o envolve e que não facilita o seu percurso. Já a luz aberta e franca que permeia a arte neoclássica, mostra um homem que dominou já a natureza à sua volta, que esta já foi convertida em cultura e em espaço da representação. A natureza é amena e aprazível, penetrável, não necessita de desvendamentos, apresenta-se como espaço a ser ocupado, não dificulta o caminho. Aliás, o Mediterrâneo é o mar, por excelência, dos caminhos, da fundação da civilização que redundará, séculos depois, na civilização europeia.
Falar de arte no Mediterrâneo é falar de uma parte da arte europeia. Uma parte apenas, porque a Europa, anos mais tarde, tratou de expurgar aquilo que era considerado bárbaro, ou menos europeu. Expurgou, ou tentou fazê-lo, a arte mais oriental. Decidiu que o caminho europeu era aquele que representava melhor a ideia que tinham de cultura e civilização e chamou a todo o resto de Outros. Criou a alteridade que distancia culturas e povos, que fecha os caminhos abertos pelo mar. O outro é aquele que não sou eu, é aquele que não entendo. É aquele tão impenetrável quanto uma floresta do norte da Europa, mesmo que esteja banhado, como nós mesmos, de sol.
Vários são os motivos que levaram a este progressivo afastamento entre povos alimentados pela mesma bacia e que navegaram as mesmas águas. Durante vários séculos o padrão greco-romano, convertido em cânon, dominou a arte europeia e de alguma maneira, determinou a História da Arte como nós a conhecemos. Heinrich Wölfflin fala de períodos clássicos e barrocos na História da Arte, como um ciclo que se repetiu por muito tempo e que se encerra no limiar do século XX. Esta alternância entre o clássico e o barroco era, no fundo, a alternância entre o cânon e os seus opositores. Entre a regra e àqueles que a ousaram quebrar. Os historiadores, geralmente, estavam a favor do cânon, da regra.
O berço da arte canónica produziu seu último grande ciclo em meados do século XVIII ‒ o movimento Neoclássico foi o estertor final de um modelo de representação do mundo. Um modelo excludente e que pretendeu ser o modelo. O Romantismo instaura, no seio da arte, o delírio. O sentimento de pertença não a um continente simbólico, mas sim a uma nação mais pequena. A uma nação que precisava ter uma voz própria que se sobrepusesse a que fora imposta durante tanto tempo. O sentimento do Romantismo sai do sítio onde nasceu e floresce um pouco por todo o lado, aliado ao sentimento e a necessidade crescentes de uma arte que queria ter também ela a sua própria voz.
É interessante percebermos que durante o século XIX, o papel que a Itália ocupou na História da Arte ocidental sofre um declínio. A Itália transforma-se num espaço museológico a ser visitado, e admirado, por aqueles que queriam ainda perpetuar o modelo. Os outros, distantes deste apelo canónico, decidiam olhar para outro lado ou para diversos lados ao mesmo tempo e daí surgem as vanguardas. A Itália volta a aparecer neste cenário com o Futurismo, dos movimentos de vanguarda o que mais apontou para o futuro e que mais ardentemente quis romper com o passado. De qualquer forma, por mais diversificada e diversa, a vanguarda europeia continua a ser a vanguarda europeia. Os outros continuam a ser os outros, frequentando, algumas vezes, como convidados bem comportados, algumas obras de alguns artistas.
Duas guerras depois, a arte, que faz parte da vida, intrinsecamente, e que não é uma atividade outra ou marginal, incorpora todas as mudanças que o mundo passou num século tão conturbado. E finalmente vê os discursos alheios ao seu próprio umbigo atravessarem os seus próprios discursos. E de repente se dá conta que existe outra arte. Que existem outras artes e outras maneiras de se ver e representar o mundo.
A arte na contemporaneidade é uma arte múltipla e pluridiscursiva. São várias as vozes que a compõem, são vários os discursos. Não é possível falarmos de um modelo ou cânon. Talvez a falta de cânon seja o modelo. Mas há algo que une, ou que pelo menos, põe em diálogo tudo que se fez ou se faz desde a segunda metade do século XX: com tantos caminhos abertos, vias, redes, reais e virtuais, com o esboroamento das fronteiras, físicas e simbólicas, parece que ainda não conseguimos falar a mesma língua. Que estamos todos juntos e muito próximos mas, simultaneamente, terrivelmente distantes. E a arte reflete sobre isto. Primeiro como um espelho e depois como alguém que pensa e questiona e coloca o dedo na ferida. Nas feridas. Há uma questão que é fulcral para a arte nos tempos que correm e que diz respeito a um sentimento de pertença: se eu não sou nem sou o outro, quem sou eu afinal? E o espaço é o território onde esta questão se expande. O espaço, já não apenas geográfico e mapeado, é o lugar que define quem sou, o que em mim é meu e o que é fruto de um sentimento comum. O que me liga aos outros? O que me difere? O que me faz ser eu?
Desta maneira o Mediterrâneo volta a fazer parte das discussões. Volta a ser um lugar de navegações e trocas, de encontros. Nicolas Bourriaud disse certa vez que a arte contemporânea não é um objeto em si, é a maneira nova de habitar velhos espaços. E são estes velhos e conhecidos espaços que foram se distanciando que devem ser novamente visitados. E re-habitados. Por isso a importância de se pensar hoje numa arte do e no Mediterrâneo. Uma arte com semelhanças e diferenças, com consensos e dissensões, mas uma arte que precisa dialogar mais e absorver melhor o outro, que nunca deixou de ser, apesar da distância, uma outra face de nós mesmos. E há que se buscar a completude.
A arte contemporânea do Mediterrâneo mais a oriente, como a Turquia, apresenta as mesmas características da arte europeia "modelar" ‒ entre os novos e os velhos media, entre as novas e as velhas técnicas, os artistas visuais procuram re-habitar um espaço aparentemente conhecido e visitado. E procuram, com a sua arte, estabelecer diálogo entre culturas diversas, entre diversidades dentro da sua própria cultura, entre modos diferentes de se habitar o mundo. Não há um modelo preestabelecido, não há uma fórmula única, nem um projeto comum. O que os une entre si, e entre os artistas do lado de cá do Mediterrâneo, é a afirmação de uma identidade, é a exploração de feridas que foram ocultadas, é, sobretudo, o desejo de ter uma voz.
Haluk Akakçe, artista turco que vive e trabalha em New York, utiliza ícones de várias culturas para falar da relação entre o homem e a tecnologia. Mas, não apenas para fazer uma reflexão sobre o tema, como muitos outros o fazem, a sua ideia é promover uma autêntica fusão dialógica que produza novos significados. A sua arte é apenas uma das muitas representantes de uma contemporaneidade que já percebeu o papel que cabe a arte, e aos artistas, nos tempos que correm: promover, uma vez mais, o diálogo entre distintas culturas, entre meios diversos, entre lógicas que aparentemente se repelem, mas que necessitam de alguém, ou algo, que construa uma ponte.
A obra de Gunes Terkol, outra artista turca, que pertence ao Ha Za Vu Zu artist group, é uma fusão entre técnicas diversas utilizadas para falar da identidade, ou das identidades sexuais. Entre um fundo abstrato e a colagem de objetos retirados do quotidiano, ela se considera uma contadora de histórias. E com suas histórias pretende que o espectador entre na sua obra através de suas próprias memórias. A identidade não é apenas do artista, mas daqueles que o veem e que com ele se identificam. Mais uma vez a presença do elemento dialógico que nos remete, invariavelmente, para uma amplificação do conceito criado por Bourriaud da estética relacional: a arte só funciona quando habitada e vivenciada.
Há artistas, como Vahap Avṣar, cujo trabalho político o obrigou a procurar refúgio fora da Turquia, refletem outra instância de criação da obra dos eternos Outros. Por mais diversos que sejam os trabalhos e as técnicas, todos caminham numa direção: o possível diálogo. O possível entendimento que não é a aceitação passiva e pacífica do outro, mas a fusão de ideias e a desejada confusão de identidades e espaços. Navegar já não é preciso. Mesmo sendo necessário. Navegar pode ser a possibilidade de perder-se no e com o outro, em outras terras, em outros espaços. Navegar em ir em direção a. Em direção ao outro, simultaneamente ao passado e ao futuro. Simultaneamente ao ocidente e ao oriente. O Mediterrâneo, como já disse, sempre foi um caminho. Talvez seja preciso voltar a percorrê-lo. E desta vez, deixar-nos perder um pouco naquilo que não conhecemos e experimentarmos o outro, que faz, mesmo que não queiramos, parte de nós.