Você já notou que em qualquer campeonato de futebol (amador ou profissional) de qualquer país, cidade ou bairro sempre existe uma parcela de times com mais dinheiro ou estrutura e outros sem patrimônio que lutam para não fecharem as portas ou caírem de divisão? Talvez você nunca tenha parado para pensar no motivo disso, porque essa diferença entre os clubes parece normal para sua mente. Isso pode ser constatado mais rapidamente caso você seja adepto da frase “Política, Futebol e Religião não se misturam”.
Tenho uma notícia: elas se misturam. Talvez você pense que sou militante de esquerda ou até marxista, mas não sou. Mesmo que eu e você discordemos de vários pontos da doutrina econômica de Karl Marx, o que é válido e necessário, a premissa de que a história é marcada pela luta de classes é real. Ela está na sua cara e no seu cotidiano. Querendo ou não, existem divisões entre aqueles que têm mais acesso ao dinheiro e estrutura em relação aos que não possuem. Lembrando que não estou falando sobre comunismo ou socialismo, mas sobre desigualdade social no futebol. Não confunda, amor.
Inclusive, não venha dizer que é só querer que você conquista. Ninguém acredita mais nesse papo de meritocracia, que é bem diferente do conceito de mérito pessoal. Mas voltando... se a sociedade reflete a luta de classes, outros campos sociais também poderiam refletir essa disputa. E se o futebol também reproduzir a luta entre as classes mais pobres e mais ricas? Ou você acha que a rivalidade entre clubes de norte a sul do globo terrestre é apenas por causa das cores ou região? Não seja ingênuo, pequeno gafanhoto.
Vejamos um exemplo. Na cidade de Belo Horizonte, os três times principais da capital, o Clube Atlético Mineiro foi criado pela classe média. Já o América Futebol Clube foi criado pela aristocracia e o Cruzeiro Esporte Clube nasceu das mãos dos imigrantes italianos que vieram construir a cidade na virada para a República. Se os ricos e pobres vivem na mesma cidade, eles também podem jogar futebol. Assim, os times e os campeonatos também não refletiriam desigualdade? Em alguns casos, a rivalidade é fruto dela da estrutura social desigual fora das linhas do campo.
Você ainda está desconfiado ou achando que é frescura ou viagem da minha mente? Vejamos outro exemplo. Já parou para pensar que entre 1.276 clubes de futebol registrados pela CBF – Confederação Brasileira de Futebol, apenas os 40 com mais investimento jogam a Série A ou B do Campeonato Brasileiro? Por que o dinheiro não chega aos outros da mesma maneira? Por que só uma parcela de atletas ganha rios de dinheiro e outros de times menores às vezes precisam dividir o tempo dos gramados com outra profissão?
Veja o caso do goleiro do Afogados de Ingazeira Futebol Clube, que eliminou o Clube Atlético Mineiro em 2020 da Copa do Brasil. Ele trabalhava em um posto de gasolina porque o clube não tinha calendário de jogos ou dinheiro suficiente. Será que todos possuem a mesma condição? Por que nem todos os meninos que fazem peneiras pelo Brasil afora são selecionados? Seria apenas falta de talento ou aqueles que possuem empresários passam na maioria dos testes?
E quem tem dinheiro para contratar empresários? Sem contar o personal para fortalecimento muscular, o nutricionista, a passagem para treinar e o par de chuteiras. Você achou mesmo que era só correr atrás da bola e chutar para o gol? Viu como quem tem acesso a mais dinheiro consegue se preparar melhor? Já reparou que no Brasil, os times da capital disputam os campeonatos regionais com um certo descaso porque a premiação é baixa e os times do interior, que muitas vezes só possuem em seu calendário este torneio, dão o sangue e mesmo assim são eliminados rapidamente das competições?
Será que o futebol jogado tem ligação com o dinheiro? Claro. Sem contar o fato das transmissões dos campeonatos vendidas e compradas por determinados canais ou empresas de comunicação para que a população tenha que assinar as plataformas para visualizar os jogos. Será que todo mundo tem acesso às mesmas plataformas? Por que uma jogadora de futebol feminino recebe menos que um masculino? Será que é porque o futebol feminino é considerado “ruim”? Não poderíamos pensar que isso também reflete a desigualdade do mercado de trabalho tradicional em que muitas mulheres recebem menos que homens para exercer a mesma função?
Mas talvez você pense que em todos os lugares, existem empresas ricas que patrocinam times e o que estaria de errado nisso? Mas e se investir em um time x ou y e promover o apagamento de outros for um mecanismo para que os times apoiados pelas classes mais altas continuem sendo uma fonte de renda para mais acúmulo de capital? Mas e se os times se aliarem a pessoas mais influentes e com poder econômico para decidir investir e servir de ponte para aumento de patrimônio pessoal ao invés de pensar-se no esporte. Será que eles vão realmente pensar nos “torcedores raiz”?
Ah não, mas o futebol masculino é mais lucrativo que o futebol feminino. Ué! Mas desde quando virou comércio? Não era pra ser um esporte? Mas e se os clubes e dirigentes aumentarem muito os preços dos alimentos nos estádios e só uma parcela não puder comprar algo para comer durante o jogo? Mas e se os times começarem a reformar estádios que servem para jogos e shows, começarem a cobrar ingressos altos e a população de classe mais baixa que frequentava os estádios antes da Copa de 2014 no Brasil não tiver dinheiro para pagar os assentos, não seria uma forma de aumentar a desigualdade de acesso ao lazer, previsto por lei?
E se cobrar 250$ ou 350$ reais em camisas e produtos oficiais que sustentam uma mentalidade de status social para apenas parte do público simpatizante do time comprar, enquanto os outros precisam utilizar camisas pirateadas na faixa de R$ 30,00 reais encontradas no camelô, não seria uma forma de segregar, escancarar e até promover a desigualdade?
E se exigir que os torcedores se tornem sócios dos clubes com mensalidades também for uma forma de privilegiar aqueles que possuem mais recursos em detrimento de outros?
O mais impressionante é que quase todos os times afirmam que são “times do povo”. Mas a pergunta é: de qual povo eles estão falando? Se o povo for aquele que frequenta estádios e parece mais um consumidor do que um torcedor, que denominamos como Nutella, está tudo bem para eles (os burgueses ou “investidores”, que comandam os clubes e fazem dele fonte de renda). Mas se você estiver falando daquele povo que ouvia os jogos pelo rádio imaginando os lances e pagava 5 ou 10$ reais para ir à geral do Mineirão, Maracanã ou Fonte Nova antes do processo de “Arenização dos Estádios”, o chamado “torcedor raiz”, talvez falem que você está politizando muito as coisas ou que a vida funciona assim ou que futebol e comércio andam juntos atualmente ou que futebol e política não se misturam.
Se lhe falarem isso, saiba que você acertou precisamente na crítica social e descobriu que desigualdade e futebol andam juntos. A pessoa que passa pano para essa situação, como diz o apresentador Caio Ribeiro: “se o horário me permite dizer, é um bananão!”.
Ok! Agora você voltar a assistir o jogo do seu time como se nada tivesse acontecido ou perceber as coisas mais profundas que envolvem seu esporte favorito. Se liga, rapaz! Torcer, futebol e esporte são políticos e refletem problemas sociais, econômicos, educacionais e culturais que eu e você não temos dimensão. Pensando assim, como diz Silvio Luiz: “Olho no Lance!”.