Estudar as palavras. Por quê? Para quê? Como algo tão imaterial pode ser tão significativo na vida das pessoas?

Comecemos por parte. Primeiramente, respondemos por que estudá-las. Para isso vamos retomar o que São João, em seu primeiro capítulo nos relembra.

In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus erat Verbum hoc erat in principio apud Deum.Omnia per ipsum facta sunt et sine ipso factum est nihil quod factum est1.

Verbo, segundo Nascentes2 (19XX: 562), tem origem no latim verbu e é “palavra por excelência”; ou seja, segundo a narrativa de São João, Palavra cria o mundo. Independentemente de credo ou religião, essa não deixa de ser uma verdade. A palavra cria. E é por isso, que, respondendo à segunda pergunta, alguém busca estudá-la.

E o que criam as palavras? Tudo. Desde sentimentos até sociedades. É por meio da palavra que o ser humano se edifica e constrói sua vida. Uma palavra como aprovado após um teste de seleção pode ser o início de uma nova vida; outra, como reprovado, pouco depois de se tentar conseguir uma habilitação para direção de veículo automotivo, pode trazer preocupações de ordem financeira para quem se esforçou durante algum tempo para aquele objetivo.

As palavras podem construir um relacionamento como um sim ou um não no dia da cerimônia de casamento (não importando se este se dá na forma civil ou religiosa). Elas podem transmitir um estado de espírito, uma visão de mundo ou até mesmo ensinar como algo deve ser feito, tal qual ensina Drummond, em seu belíssimo poema A procura da poesia.

Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.3

Mais adiante, no poema, o poeta maior nos mostra a postura que se deve ter diante das palavras: de contemplação, de reverência, de proximidade com esse ser autônomo que espera, qual um deus, ser revelado, ser descoberto, por meio de uma chave de interpretação do escritor, que a usará dessa forma, ainda que o leitor a desconheça.

Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave?3

Esse ser secreto e com tanto poder, como disse anteriormente, é imaterial. Porém há que se considerar que tal realidade se nos impõe de uma forma completamente física, uma vez que possui forma, tornando-a possível de ser assimilada, compreendida. Assim não se pode dizer que a palavra é abstrata, ainda que não se possa tocá-la.

Tal confusão se dá justamente por causa de uma não distinção entre forma e matéria, sendo esta algo palpável e que pode ser sentido, apreendida pelo tato; a palavra é apreendida pela visão, uma vez que possui forma – a qual lhe garante uma existência independente, ou seja, não condicionada pela existência de outro. Desse modo, ela é concreta e seus efeitos em nós também.

Estudar a palavra é ser apaixonado pelo ser humano. Sendo o único ser realmente racional na face da Terra, o homem consegue, além de falar (o que também faz um papagaio), criar realidades a partir daquilo que diz, seja de forma oral ou escrita. E, com isso, consegue erigir a si mesmo bem como a toda uma sociedade com símbolos, normas, interditos e permissões.

Por meio da palavra, o homem acessa os bens dos quais necessita para poder sobreviver e também cria laços dos mais variados tipos, comunicando seus desejos e necessidades; por meio dela cria deuses e ideologias; cria histórias e biografias.

Por meio dela, ele se fortalece, enfraquece, apaixona, ou até mesmo mata e morre. Ainda que não seja dita, em seu pensamento, a palavra se faz presente, criando possibilidades e mundos que ainda esperam por ser vividos ou desbravados.

Sendo assim, como não amar estudar as palavras?

Notas

1 No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por Ele, e nada sem Ele foi feito.
2 Nascentes, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. s/n; p. 562, Rio de Janeiro, 1955.
3 Andrade, Carlos Drummond de. A procura da poesia.