Não consigo explicar se não for na minha língua, professora. Em português parece não ter sentido.
(Aluno Yuhupdeh tentando explicar o que é educação escolar indígena)
Diferente de outros países de Abya-Yala, o Brasil ainda afirma o mito do monolinguismo ao reconhecer apenas a língua portuguesa como oficial do território nacional. Mesmo que em sua Constituição de 1988 reconheça a existência e prometa direitos aos povos indígenas, as práticas políticas e intervenções do Estado continuam sendo de apagamento e tentativa de integração.
O último censo do Brasil revelou que temos uma população de 1,69 milhão de indígenas e que a maior concentração está no norte do país, cerca de 44,48% da população indígena nacional, o que equivale a 490,9 mil pessoas. Manaus foi apontada como a cidade com maior população indígena no território nacional, com cerca de 71.713 indígenas, de acordo com os dados divulgados pelo Censo de 2022, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e mesmo assim apenas a língua portuguesa é considerada a única língua oficial em todo o território nacional.
São Gabriel da Cachoeira, um dos municípios do Estado do Amazonas, localizado no alto Rio Negro, com o maior número de povos indígenas até o Censo de 2010, possui 74% de sua população indígena, pertencentes a 23 povos diferentes e falantes de 18 línguas. Diante dessa realidade, o município de São Gabriel da Cachoeira foi o primeiro no Brasil a reconhecer idiomas indígenas como oficiais, além da língua portuguesa. Após a aprovação da Lei Municipal 145, de 22 de novembro de 2002, as línguas indígenas nheengatu, tukano e baniwa passaram a ser línguas oficiais, juntamente com o português.
Além de São Gabriel da Cachoeira, outros quatro municípios brasileiros reconheceram línguas indígenas como oficiais. O município de Tacuru, no Mato Grosso do Sul, em 24 de maio de 2010, após sanção do Presidente da República, oficializou a língua guarani em todo seu território. Bonfim, em Roraima, é o terceiro município brasileiro a oficializar línguas indígenas, seguido de Cantá, no mesmo estado. Foi a partir da Lei 211/2014 que as línguas indígenas wapichana e macuxi foram oficializadas; e em 13 de novembro de 2019, após a aprovação da Lei 571, a língua indígena Mebêngokre (Kayapó) é oficializada em São Félix, no estado do Pará. Embora apenas 5 municípios brasileiros tenham até hoje oficializado línguas indígenas, precisamos ressaltar a importância desses acontecimentos como passos para o reconhecimento da diversidade cultural existente em nosso país, para que em um futuro possível, nos reconheçamos como um Estado plurinacional, à exemplo de outros países de Abya-Yala.
Em dezembro de 2023, tive a oportunidade de ministrar a disciplina Língua Indígena para a 5ª turma do Magistério Indígena no Distrito de Taracaua, em São Gabriel da Cachoeira. Uma turma com total de 24 alunas e alunos do povo Yuhupdeh que cursam o magistério para se tornarem futuros professores nas escolas indígenas em seus próprios territórios. O povo Yuhupdeh, assim como eu, não é de Taracua. Eles foram alojados naquele distrito para facilitar a logística das aulas, pois em Taracua existe uma estrutura física dos antigos internatos indígenas, ainda do período da colonização, mas isso é assunto para outra escrita. Além dos Yuhupdeh, outro povo foi realocado para Taracua com a mesma finalidade de estudos, o povo Hupdah.
Distante de São Gabriel da Cachoeira a pelo menos 6h de voadeira, motor 40 (barco considerado relativamente veloz), Taracua é território do povo Tukano, mas durante a presença dos povos Hupdah e Yuhupdeh, qualquer partida de futebol no fim de um dia inteiro de atividades te transporta para a melhor de todas as aulas de linguística que você poderia imaginar. A aula do enterro do mito do monolinguismo do Brasil. Em meio a músicas de beiradão tocadas nas diversas caixas de som recarregáveis, diálogos múltiplos são realizados com naturalidade e espontaneidade. Frases alegres podem ser iniciadas em português, mas finalizadas em tukano, yuhúp, húpda, desana, tuyúka e um munduruku atrevido (rs) e até mesmo espanhol. Falar diferentes línguas naquele lugar não é sinônimo de ostentação ou 'pavulagem', falar em língua materna significa maneira de interpretar o mundo. É uma lógica de pensamento e de afirmação daquilo que se é.
Durante uma das aulas, perguntei aos alunos por que apenas a língua portuguesa era considerada oficial em todo território nacional e um dos alunos falou que era porque moramos no Brasil, que foi colonizado pelos portugueses. Achei interessante a resposta e perguntei a razão de aceitarmos isso e todos ficaram apenas se olhando e não obtive nenhuma resposta. Nesse dia, trabalhamos os conceitos de monolinguismo e plurilinguismo. Em outra aula, analisamos os Troncos e as famílias linguísticas e fomos direto para os troncos das línguas indígenas. Ao encontrarem o tronco linguístico ao qual seu povo pertencia, percebi que sempre que tinham uma oportunidade, os Yuhupdeh afirmavam que o tronco linguístico de seu povo era o Makú e que a família linguística era Yuhúp e isso lhes dava segurança para afirmarem quem eram.
Em outra aula, decidimos sair para dar uma volta nas ruas de Taracua. Durante a caminhada, fomos conversando em português entre nós e sempre que encontrávamos alguém pelo caminho, nos cumprimentávamos na língua que a outra pessoa falava. Algumas vezes falamos em português, outras em tukano, depois em yuhúp e ainda em tuyúka. Sem perceber o que acontecia, mostrei para todos que o monolinguismo no Brasil não passa de um mito. Além disso, questionei sobre o lugar. Quando perguntei se eles eram de Taracua, todos responderam que não. Então, perguntei de onde eram e rapidamente a turma se reorganizou em comunidades. Foi bem interessante quando todos se levantaram, trocaram de lugar e se aproximaram daqueles que pertenciam às suas comunidades de origem, mesmo todos sendo Yuhupdeh, eles se entendiam como iguais e como diferentes, a depender da comunidade a que pertenciam. Depois perguntei se ao estarem em Taracua por cerca de 6 meses, se eles tinham deixado de ser Yuhupdeh. Todos responderam que não, mas quando perguntei por que não, eles se olharam, mas não souberam responder. Foi quando falei que somos corpo-território e que em qualquer lugar que estejamos, vamos continuar sendo indígenas, mesmo que alguém diga o contrário.
Escrevo sobre essa experiência em Taracua porque existem muitos outros lugares onde é possível experimentar a pluriculturalidade linguística existente no Brasil e às vezes não conseguimos perceber o acontecimento por sua característica natural de ser. Na cidade de Manaus, por exemplo, existe um lugar bem específico onde é possível ouvir e falar diferentes línguas. Trata-se do Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas – MEIAM. É uma casa que pertence ao MEIAM e que abriga alguns estudantes indígenas que vêm de suas comunidades fazer faculdade em Manaus.
Quando nos reunimos na casa do MEIAM, seja para reuniões ou celebrações (festas e afins), é possível presenciar o enterro do mito do monolinguismo brasileiro. Lá, diálogos, paqueras, cantos e até discussões ocorrem entre diferentes povos indígenas: tikuna, tukano, marubo, munduruku, sateré-mawé, witoto, desana, piratapuya, kótiria, tuyuka, wapichana, baré, mura, baniwa, maraguá, apurinã, kokama e muitos outros povos e suas diferentes línguas. Mas, por que esses diálogos não acontecem com a mesma frequência em diferentes outros lugares que frequentamos? A resposta é simples: língua é poder e nem todos os espaços na cidade de Manaus nos possibilitam a liberdade de ser quem somos. Principalmente os espaços de exercício de poder, como as universidades, por exemplo, que desenvolvem linhas abissais e dividem o que é língua e o que é dialeto, o que é considerado certo e/ou errado. Nesses lugares, nossos corpos e pensamentos ainda não são totalmente aceitos, por isso, muitas vezes nos limitamos ao monolinguismo e, algumas vezes, chegamos até a acreditar nesse mito.
Na tentativa de inverter essa lógica de pensamento, precisamos lutar para construir e desenvolver mais espaços de segurança para que nossas línguas não se sintam intimidadas. Para que a existência do outro não signifique apagamento de nossas existências. Lugares como a casa do MEIAM precisam ser ocupados e preenchidos pelos nossos diferentes modos e lógicas de pensar e existir, para que possamos nos sentir à vontade e com naturalidade, como em Taracua. Precisamos criar e garantir ambientes em que aquilo que somos não nos deixe envergonhados e intimidados diante da presença de corpos diferentes dos nossos, pois o que mais desejamos é a possibilidade de existência das diferenças. Que a espontaneidade da pluralidade linguística vivida por mim em Taracua e na casa do MEIAM possa se estender por todo o território brasileiro e que nossa constituição possa reconhecer que somos um Estado plurinacional e que temos o direito de existir.
Quando pensei em escrever sobre o mito do monolinguismo no Brasil, pensei em democratizar experiências existentes em nosso país, como por exemplo, a oficialização de algumas línguas indígenas, assim como a democratização de experiências do cotidiano, como uma simples partida de futebol, onde diferentes povos tenham o direito de se expressar da maneira como interpretam o mundo e seus modos de viver. Talvez assim, possamos estimular diálogos sobre diversidade linguística no Brasil e talvez possamos, assim como flechas, abrir diálogos sobre multilinguismos nas próprias instâncias de exercício de poder, como as universidades, para que nunca mais em uma disciplina que trata de teorias linguísticas, as línguas indígenas não sejam vistas como minoritárias. Nunca mais um Brasil sem nós!